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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT51: Materialidades do Sagrado: ambivalências e ambiguidades entre "religião" e "cultura"

Renata Menezes, Raquel Sousa Lima

As discussões sobre materialidades, objetos ou coisas conformam uma subárea temática em crescimento. Nela, os estudos que abordam materialidades socialmente qualificadas de "religiosas" revelam-se estratégicos. Materialidades "religiosas" em ação, isto é, tomadas em situações ou configurações em que as pessoas as usam, as disputam, as incorporam, a partir de determinadas práticas, articulando-se ao seu redor, demarcam um campo particularmente frutífero para repensar oposições como as de sujeito / objeto; real /virtual; vivo / morto; todo / parte; corpo / pessoa, religioso / secular; espírito / matéria. Nesse GT, pretendemos reunir trabalhos de pesquisa, em andamento ou de recente conclusão, que explorem as ambivalências e ambiguidades entre as materialidades "religiosas" e a categoria "cultura". Não apenas pensando em "usos da religião" e "usos da cultura", mas em situações de redefinição mútua, de combinação ou de oposição, recuperadas a partir de material etnográfico. A presença do "religioso" em coleções etnográficas, em exposições, nos patrimônios material e imaterial, em performances e arquivos pode provocar tensões em classificações hegemônicas e causar o estranhamento de epistemologias consolidadas. No sentido inverso, ou complementar, a presença do "cultural" em rituais, templos e eventos religiosos pode demarcar ou dissolverdomínios da vida social, e mesmo (re)definir o que é religião e o que é cultura. São questões como essas que exploraremos no GT.

Palavras chave: religião; cultura; materialidades
Resumos submetidos
Com santos e encantados: Produção e incorporação de entes materiais e espirituais no terecô de Codó (Maranhão)
Autoria:
Autoria: O terecô é considerado a religião afro-brasileira tradicional de Codó e sem dúvida é uma das expressões religiosas mais fortes desse lugar. Muitos de seus rituais, como a gira, são marcados pelo o toque de tambores e cabaças, acompanhados por doutrinas que levam à incorporação de entidades espirituais conhecidas como encantados. Os espaços nos quais os terecozeiros realizam seus rituais são chamados de tendas. A maioria das tendas é identificada por nomes de santos católicos, como, por exemplo: a tenda espírita de umbanda Santa Helena e tenda espírita de umbanda São Domingos. Além da composição do nome social das tendas, os santos católicos estão envolvidos em outras práticas no terecô. Muitas das imagens presentes nos altares dos espaços religiosos foram solicitadas pelos encantados dos pais e mães de santo. Dependendo da popularidade do santo, algumas imagens são mais difíceis de encontrar do que outras, e por isso, os terecozeiros criam estratégias ou acionam suas redes de relações para obtê-las. Em outros casos uma imagem de santo é adquirida por meio de herança de obrigações ou promessas entre parente. A partir dessas vivências, este trabalho tem objetivo pensar os trânsitos, agências e sentidos dos santos na vida dos brincantes de terecô, na cidade de Codó.
O culto e a cultura: disposições espirituais e fluxos tradutórios em interação nas performances afro-diaspóricas
Autoria:
Autoria: Historicamente, o conceito de "religião" foi compreendido enquanto uma diversidade de práticas relacionadas ao sobrenatural, que ao serem agrupadas sob um único conceito foram interrogadas ao espelho do cristianismo (HARDING, 2019; ASAD, 2020; REINHARDT, 2020). Ao pensar a categoria de religião enquanto uma força no mundo, pretendo traçar algumas possibilidades que ela encerra enquanto categoria transhistórica, reconhecendo também o que está embutido e o que está envolvido no processo de tradução. Neste trabalho, refletirei sobre os deslocamentos operados em um conjunto de práticas e disposições espirituais afro-brasileiras, que apontam uma reelaboração da conceitualização e das possibilidades analíticas de abordagens das interações tradutórias (SANTANA, 2019) entre "religião" e "cultura" (CUNHA, 2009). Nesse sentido, abordarei as possibilidades de encontros e confluências (BISPO, 2015) entre cosmovisões africanas na diáspora e indígenas em (r)existência à colonização, configurando modos de vida que foram, por diversos processos, segmentados e reconhecidos como religião. A prática dos atos "religiosos", em contextos de performances e "projetos culturais", produz materialidades que se articulam aos modelos pensados para a gestão e execução físico e financeira da "cultura" e tensionam relações com os conhecimentos e modos de fazer tradicionais, ainda que em alguns casos viabilize as suas realizações. A partir de uma pesquisa etnográfica em terreiros e comunidades de tradição ancestral de matriz africana da região do recôncavo baiano, abordo a consolidação de um repertório performático, inspirado nos saberes e fazeres dos terreiros, mas expresso através de técnicas artísticas em trabalhos de arte e educação e a realização de "projetos culturais", que performam a cultura como "produto cultural", investigando assim as oposições religioso-secular e sujeito-objeto nas socialidades e performances afro-diaspóricas. Referências ASAD, TALAL. "Thinking about Religion, Belief, and Politics", in Robert Orsi (org.), The Cambridge Companion to Religious Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 36-57, 2012. HARDING, Susan. 2019. "Religion: It"s Not What It Used To Be". In. (MacClancy, Jeremy (org.). In. Exotic No More, Second Edition. Chicago: Chicago University Press. 43-59. [tradução para fins didáticos de Bruno Reinhardt] REINHARDT, Bruno. "Os estudos críticos da religião e do secularismo: virada ou paradigma?". Revista Crítica de Ciências Sociais, n.123, pgs 97-120, 2020. SANTANA, Tiganá. Tradução, Interações E Cosmologias Africanas. Cad. Trad., Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019 SANTOS, Antônio Bispo dos (Nêgo Bispo). Colonização, Quilombos - modos e significações. Brasília: INCT, 2015.
Ambientações religiosas: locomoção extensiva da rabeca bragantina
Autoria:
Autoria: Este artigo compõe resultados das pesquisas desde 2017 (mestrado em Ciências da Religião - PPGCR-UEPA) até o atual momento (2022) nas etnografias do doutoramento no programa de Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFPA. A pesquisa analisa relatos de mestres luthiers e músicos rabequeiros da cidade de Bragança-Pará-Brasil envolvidos tanto na Festa da Marujada - parte da festividade religiosa ao Glorioso São Benedito - como em festividades cúlticas de igrejas e congregações da Assembleia de Deus. Pondera assim, a locomoção da rabeca (instrumento precursor do violino) entre ambientações religiosas no cenário do cristianismo - católico e pentecostal. A pesquisa já acompanhou a fabricação de uma rabeca (biocultural); sua gênese e localidades dos materiais: Ipê Amarelo - centro de Bragança; Cedro Vermelho - Comunidade Jararaca a 22km de Bragança; e Manilha - Ananas sp. da família Bromeliaceae - Ramal do Cupu de Baixo, em Vila Fátima, na reserva Mirasselvas. Alguns resultados desvelam a locomoção da rabeca para diversos ambientes religiosos por intermédio de rabequeiros que a fabricam e a tocam nas festividades tanto católica, quanto evangélica. Palavras-chave: Biocultural. Antropologia. Rabeca. Ambientes Religiosos.
Fotografias no Terecô
Autoria:
Autoria: O complexo campo da religiosidade afro-brasileira tem se apropriado cada vez mais das visualidades como uma narrativa importante no cenário nacional, seja na luta pelo acesso das políticas públicas ou na divulgação das práticas ritualísticas nas redes sociais. O campo da antropologia visual tem sido importante na construção teórica da pesquisa. Nesse sentido, a fotografia tem possibilitado perceber narrativas de temporalidades, afetos e reciprocidades. O presente trabalho busca elencar o complexo e criativo enlace entre pessoas, entidades e fotografias no Terecô. Vale ressaltar que o Terecô é uma das religiões afro-brasileiras difundidas pelo estado do Maranhão com entidades organizadas em famílias, tendo muitas festas com toques de tambores nos terreiros. Trato do terreiro da minha família de sangue e de santo, localizado o terreiro na cidade de Bacabal (MA).
Quilombo de Palmeira e suas espiritualidades
Autoria:
Autoria: Este artigo busca dialogar com a questão religiosa a partir do catolicismo na comunidade quilombola de Palmeira, situada na cidade de Piatã-BA, na Chapada Diamantina. As discussões acerca de comunidades quilombolas têm sido de grande valia para identificarmos a importância da resistência negra no território brasileiro. Diante disso, analisar os efeitos do catolicismo a partir da antropologia e na região elencada é de suma importância para que se valorizem a cultura, a tradição e a consciência patrimonial dos grupos sociais que são a base da vida no Brasil. A partir disso, identificar quais, as influências do catolicismo popular no quilombo de Palmeira, norteará o artigo para que possamos entender que tipo de catolicismo popular é exercido principalmente porque a comunidade religiosa católica no quilombo é gerida por leigos que cuidam das atividades religiosas da paróquia.
O povo de Deus, no deserto andava - símbolos, corpos e gestos para celebrar o Senhor morto
Autoria:
Autoria: Este trabalho trata-se de uma análise acerca das celebrações da sexta-feira santa, realizadas na cidade de Itumbiara - Goiás durante a semana santa. Com destaque à procissão do Senhor morto, o olhar volta-se aos elementos advindos da religiosidade popular. O termo rito, adotado neste trabalho, evoca tanto as práticas católicas inscritas em um ritual com normas pré-estabelecidas quanto manifestações provenientes da piedade popular, tais como os terços, bênçãos, folguedos, procissões, dentre outros, carregados de significados. Para tanto, optou-se por analisar os símbolos, gestos e corpos presentes na procissão do Senhor morto e na celebração da Paixão do Senhor, utilizando-se da observação atenta dos elementos sensoriais e sonoros: cheiros, sons, altares, plantas e gestos. A performance vicejante na procissão do Senhor Morto consiste em uma demonstração de ritos coletivos, os quais são vivenciados por meio de ações e gestos: ao trazer em mãos suas velas, cantando, rezando e caminhando, os participantes vivenciam ativamente o rito.
O cachimbo barroco: materialidades arqueológicas entre o sagrado, o artístico e a vida vivida
Autoria:
Autoria: O barroco é um estilo artístico que, no Brasil, atingiu seu auge em arquiteturas eclesiásticas do século XVIII, associado a elementos rococó (Bazin, 1964; Panofsky, 1995, Bastide, 2006, 2018). Fez parte dos principais templos religiosos setecentistas, em uma exuberância decorativa. O objetivo ornamentalista barroco, que remete à decoração absoluta, deliberadamente gerava deslumbre e confusão vertiginosa, que, associados aos motivos religiosos e intensa sentimentalidade psicológica, desempenharam função cristã de persuasão (Wölfflin, 2018; Adorno, 1982). No entanto, o barroco não se limitou a espaços eclesiásticos. Ele permeou todos âmbitos da vida. Vale lembrar que a própria sociedade setecentista não separava vivências sagradas e profanas; a festa religiosa era catarse profana. Bastide (2006) observou em estudo sobre portadas que os motivos barrocos empregados na arquitetura eclesiástica e na secular não se distinguem, podendo apresentar elementos santos e pagãos. Considerando o próprio gosto do espírito barroco pela justaposição de atributos potencialmente contraditórios (Wölfflin, 2018), não havia incoerência em inserir símbolos intensa e exclusivamente cristãos em espaços e suportes materiais seculares. Há uma categoria de cachimbos feitos e utilizados no Brasil entre os séculos 17 e 19 que foi denominada barroca desde a década de 1940 (Barata, 1944, 1951; Brancante, 1981; Agostini, 1998, 2018; Souza, 2000, 2018; Hissa, 2017, 2022). O presente trabalho aborda esses cachimbos a partir da Arqueologia, disciplina — antropológica segundo o modelo boasiano dos quatro campos — que tradicionalmente trata de materialidades. Várias peças compõem a discussão, compiladas por meio de levantamento direto em coleções museológicas e arqueológicas e indireto, em fontes secundárias. Múltiplas questões podem ser colocadas a partir dessas peças, tão dispersas no território brasileiro, entre elas: As pessoas que fizeram esses cachimbos teriam sido as mesmas que elaboravam os retábulos e púlpitos das igrejas barrocas? O que teria significado para os fumantes o uso de cachimbos decorados com motivos semelhantes àqueles dos grandes templos religiosos? Teria sido fumar, em alguma medida, um ato sagrado? A fumaça, entendida como materialidade em si mesma, teria sido parte essencial da composição barroca (Souza, 2000), da prática fumageira (Hissa, 2017) e/ou de um ato sagrado de fumar (Hissa, 2022)? A discussão tocará nessas questões, a partir da materialidade dos cachimbos, bem como do etos barroco e características da sociedade setecentista. Espera-se evidenciar algumas insuficiências de e/ou permeabilidades entre oposições duais entre sagrado e profano, arte e artesanato, erudito e popular, material x inconcretude, entre outros aspectos que evocam os cachimbos barrocos.
Entre religião e política: As estratégias de legitimação de campanhas femininas no interior do Cariri cearense
Autoria:
Autoria: Apresento nesse texto reflexões acerca das disputas locais de representação, tendo como base as performances femininas no espaço da política formal e suas estratégias de legitimação. que nesse contexto especifico, perpassa o agenciamento do ritual religioso de carregar o andor de Santo Antônio nas festas do Padoreiro. Nesse espaço, tensiono os conceitos de uma suposta identidade de gênero fixa a partir de um entendimento de gênero enquanto plural (BENTO, 2014), e do campo da política como espaço de censura ao limitar e prescrever discursos que estruturam aquilo que é pensável politicamente (ARENDT, 2007), fazendo desse espaço segundo Bourdieu (2006) "Um dos menos livres que existe". O Trabalho de campo foi realizado durante as campanhas eleitorais de 2016, na região do Cariri cearense, tecnicamente, foram feitas observações em convenções, reuniões, comícios e eventos (como os religiosos) que de alguma forma eram relevantes para a consolidação de uma campanha, em diversas cidades da região. As relações e personagens aqui descritas são referentes a uma dessas cidades investigadas, de onde inferimos, que apesar de o campo da política dificultar a entrada a permanência de corpos entendidos como femininos em seu interior, essas mulheres têm encontrado estratégias para participarem do espaço publico da política formal; uma delas, é fazer uso das brechas nas estruturas simbólicas e culturais para construirem outros espaços e lugares a serem ocupados.
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a Rainha do Brasil: uma análise da institucionalização das devoções e narrativas populares.
Autoria:
Autoria: No presente trabalho apresento uma proposta de reflexão sobre o desenvolvimento e a afirmação do espaço religioso da cidade de Aparecida/SP no contexto de transição entre os séculos XIX e XX. Na História da Igreja Católica no Brasil, este período ficou marcado pelo processo de afirmação da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como Rainha do Brasil, movimento que se concretizou com o júbilo de coroação da imagem da Virgem no ano de 1904. Neste interim, a elite eclesiástica brasileira se esforçava para dar continuidade ao processo de reforma institucional iniciado em meados do século XIX e que tinha como objetivo a moralização das práticas religiosas e a ruptura com manifestações externalizadas de devoções (beijamento de fitas; folguetórios; teatralização). A Reforma Ultramontana objetivava a valorização de uma fé mais internalizada, com base em um comprometimento sacramental dos fiéis. Do ponto de vista político, o Brasil vivia a transição do Império para a República; a afirmação do Estado laico e os primeiros anos do trabalho livre, pós abolição da escravidão. Destaca-se que o contexto político conduziu a Igreja a adotar um posicionamento em defesa e afirmação da instituição no cenário político nacional. A realidade descortinada aponta para a afirmação de um espaço religioso que dialoga diretamente com as memórias e devoções populares, destacando as narrativas devocionais e distanciando-se do rigorismo reformista da Igreja ultramontana. Tal movimento tem início com o esforço da Igreja em coletar, registrar e filtrar as narrativas de milagres relacionadas à Virgem e reapresentá-las à sociedade sob a ótica institucional, o que foi feito por meio de narrativas escritas, orais e imagéticas. É justamente este movimento que pretendo analisar no trabalho apresentado. O farei por meio de um estudo dos livros de registros da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá e da preparação da Basílica Histórica de Aparecida para a coroação da imagem da Virgem em 1904. Como base teórica da pesquisa utilizo os conceitos de memória de Michael Pollak (1989) e Paul Ricceur (2007) e os apontamentos sobre a História Cultural das Religiões propostos por Nicola Gasbarro (2013).
"Nesse terreiro tem axé e tem viado": Alguns apontamentos entre materialidades, dissidências sexuais e sagrado no terreiro de umbanda.
Autoria:
Autoria: "Esse Terreiro tem axé e tem viado". Frase dita por um dos interlocutores da pesquisa, resume bem a relação entre o sagrado e as experiências das sexualidades dissidentes no Terreiro Mina Nagô Cabocla Mariana e Tapinaré das Matas, na cidade de Igarapé Açu, nordeste paraense. As vivências, tensionamentos e experiências (re)construídas entre as entidades denominadas como caboclos, exus, pombagiras, juntamente com as sexualidades dissidentes são atravessados pelas "coisas do terreiro", seja como os assentamentos, as vestimentas, as velas, as guias, as imagens de santo, dentre inúmeros objetos, que, longe de apenas "representarem" o sagrado, são a própria força e axé das entidades, e a partir dos corpos homoafetivos mediúnicos, se fazem presente no terreiro. Neste sentido, este trabalho tem por objetivo compreender as materialidades, o lugar e as experiências das sexualidades dissidentes no terreiro citado, identificando as negociações e também conflitos entre as entidades e os corpos não heteronormativos. Para isso, o percurso metodológico tem como base a etnografia, que não visa estabilizar as complexidades do objeto pesquisado, mas buscar caminhos de interpretá-lo; além disso, as entrevistas semiestruturadas também servirão de base como ponte para a compreensão das trajetórias dos sujeitos e das entidades, e assim traçam caminhos entre a memória dos interlocutores. Por fim, aponto como que as materialidades, ao serem tecidas e também tecerem as experiências do/no terreiro, novas interlocuções que envolvem o sagrado são moldadas, nas quais as entrelinhas que mediam as entidades e as sexualidades dissidentes são (re)afetadas em cada ritual.