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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT20: ANTROPOLOGIA ENGAJADA: relatos de pesquisa sob as perspectivas teórico-metodológicas e éticas

Fernanda Valli Nummer, Maria Cristina C de C França

No Brasil, a Antropologia ainda procura ampliar sua visibilidade através do aumento crescente em enfoques no envolvimento da pesquisa na prática das transformações do mundo social. Esse forte apelo tem sido envolvido em questões teórico metodológicas denominadas de antropologia engajada, antropologia aplicada, antropologia prática, entre outros. Na antropologia americana, que tem orientado essas reflexões, os autores distinguem uma série de formas de envolvimento: partilha e apoio nos cotidianos das interações do trabalho de campo; ensino e educação pública; crítica social; participação e liderança colaborativa durante o trabalho de campo; em ações judiciais como testemunha especializada; e o ativismo que tem como base a ideia de que o antropólogo tem compromissos como cidadão quando confrontado com as violações ou sofrimento de outros (Low; Merry, 2010). Nos casos das pesquisas antropológicas reconhecidamente engajadas, os dilemas da ciência antropológica brasileira, em tempos de decolonialidades, emergem com novas questões em discussão. O GT busca analisar consensos e particularidades que envolvem pesquisas de campo engajadas na antropologia brasileira. A interação entre pesquisador e seus interlocutores na pesquisa etnográfica é, por vezes, muito prolongada e envolve afinidades significativas aos sujeitos do processo, quando e como podemos chamar nossos estudos antropológicos de "engajados" na atualidade?

Palavras chave: Antropologia engajada; relatos de pesquisa; particularidades.
Resumos submetidos
O corpo da pesquisadora na "pista" e os desafios da antropologia engajada: vivendo experiências com torcedores organizados da Força Jovem do Vasco.
Autoria: Elisa Cardoso
Autoria: O objetivo deste trabalho é considerar como a presença do meu corpo em campo afeta e produz uma postura social que se reflete em um fazer etnográfico e uma escrita engajada. Abordarei minha experiência corporal enquanto mulher branca, pesquisadora e moradora de favela, acompanhando torcedores organizados de "pista" da Força Jovem do Vasco (FJV) no Estado do Rio de Janeiro que são, em sua maioria, homens negros e/ou favelados. Me refiro há dois anos de vivências com torcedores organizados em territórios de "pista" - categoria analítica que se compreende como deslocamento das torcidas organizadas pelas ruas e contextos urbanos. Essa perspectiva situa o corpo torcedor radicalmente instrumentalizado, pronto para o conflito, às lições de aprendizagem da rua, guerras no interior da própria torcida e com organizadas rivais, além das disposições obrigatórias e vontades que revelam o pertencimento nesses agrupamentos. Em suma, as manifestações e representações na pista fazem das torcidas organizadas modelos de sociabilidades masculinas faveladas. Assim, a "pista" oferece uma análise detalhada da economia das torcidas organizadas como sistema de troca e obrigatoriedade entre o capital corporal e capital moral. Dentro desse quadro de análise meu corpo evidencia marcadores sociais relevantes, possibilitando o engajamento no fazer antropológico a partir de relações de proximidade, confiança e conflito com os torcedores organizados da FJV. Desse modo abordarei os desafios de uma Antropologia engajada que combinada com uma etnografia política implicada, tenta agenciar novas problemáticas e possíveis contribuições para o fenômeno das torcidas organizadas.
Tecer-pensar redes de solidariedade: reflexões teórico-metodológicas sobre pesquisa e militância junto à Associação de Familiares e Amigos/as de Presos/as
Autoria: Ana Clara Klink de Melo
Autoria: O presente trabalho tem por objetivo discutir o estatuto e as implicações do conhecimento que tem sido produzido em uma etnografia realizada, desde a segunda metade de 2021, junto à Associação de Familiares e Amigos/as de Presos/as, associação localizada na zona leste paulistana voltada ao ativismo na pauta anticarcerária e ao apoio, acolhimento e orientação de pessoas afetadas direta ou indiretamente pelo sistema de justiça criminal. A pesquisa segue os fios de trajetórias urbanas de indivíduos e famílias que gravitam ao redor do coletivo e olha para a produção de espaços liminares entre a rua e a prisão. Isto é, o que significa viver no "entre" a prisão e a liberdade e como se articulam e operam as forças e dispositivos que acionam a circulação de um lugar a outro. Ao mesmo tempo em que a entrada em campo significou ter de enfrentar as dificuldades de aproximação de um universo marcado pelo estigma e pela desconfiança (GODOI, 2015), lidar com pessoas, suas dores e urgências colocou questões sobre como responder às implicações políticas emergentes do trabalho etnográfico (KOPENAWA; ALBERT, 2015). Por isso, nos últimos meses, além de acompanhar o cotidiano da associação, passei a construir ações de ativismo e militância e a atuar em sua frente de orientação jurídica - em função de ter também formação em direito -, dividindo no campo o "tempo acadêmico" com o "tempo da urgência" (MALVASI et al, 2018). Me proponho então a refletir sobre uma ordem de questões político-epistemológicas que não apenas são consequência dos caminhos que escolhi para estar lá, como também refletem as implicações do meu lugar no campo sobre as trajetórias de vida que tenho acompanhado. Em um primeiro momento, discutirei as limitações, potencialidades e o alcance de um olhar situado nas fronteiras entre o ser pesquisadora, militante e advogada. Em seguida, me proponho a pensar sobre práticas de cuidado e afeto no campo (LOW; MERRY, 2010, p. 207) como produtoras de conhecimento, e sobre como meu lugar de participação e engajamento é também constituinte das redes de solidariedade que têm se mostrado capazes de prospectar e fortalecer linhas de fuga dos circuitos de exclusão que parecem sempre em vias de levar à prisão. Partindo de reflexões sobre os significados de uma "antropologia engajada", olho para como se colocam diante de um campo em que redes de cuidado e apoio - seja na forma de escuta, amparo, seja na forma de tradução do universo jurídico, tão determinante quanto inacessível para pessoas atravessadas pela justiça criminal -, são centrais para contrapor forças de violência e coerção e possibilitar outras formatações de vida.
De um ponto de vista assumidamente engajado: bissexualidade, academia e ativismo
Autoria: Danieli Klidzio
Autoria: Partindo de reflexões pertinentes à dissertação de mestrado da primeira autora, no presente trabalho refletimos sobre o fazer etnográfico considerando questões éticas e teórico-metodológicas desde uma perspectiva engajada na qual a pesquisadora é também parte de seu campo. Por meio de uma etnografia a partir das mídias digitais, a referida pesquisa pensa a bissexualidade enquanto identidade sexual e política e as produções brasileiras em torno desta. Nos últimos anos movimentos ativistas e referências acadêmicas vêm se expandindo por meio de iniciativas coletivas como o GAEBI (Grupo Amazônida de Estudos sobre Bissexualidade) e a Frente Bissexual Brasileira. Por se identificar enquanto bissexual, pesquisar sobre bissexualidade e integrar tais movimentos, a autora tem feito seu trabalho de campo enquanto sujeito "de dentro". A pesquisa é construída em um movimento de: voltar-se para tal campo de pesquisa por inserir-se e identificar-se pessoal e politicamente como bissexual; ao mesmo tempo em que a própria posição de pesquisadora do tema produz condições de acesso a determinados grupos bissexuais. Nesse sentido, mesmo que inevitavelmente ainda se faz presente uma autoridade etnográfica, a ideia de "objeto" de pesquisa deixa de fazer sentido na medida em que são borradas as fronteiras entre sujeito e objeto como localizações opostas e não agenciadas. Também, uma perspectiva "de dentro" impacta a noção de campo de pesquisa como sendo um deslocamento para o outro, para o diferente e exótico na medida em que exige também um olhar para si e um "estranhamento do familiar". Desde as motivações para a escolha do tema, o exercício etnográfico compreende o engajamento na pesquisa, a pesquisa é construída visando ser útil na crítica à bifobia e na construção de uma memória bissexual. Diante do apagamento dessa identidade no ativismo LGBTQIAP+ e nos estudos sobre sexualidade e gênero, de um ponto de vista assumidamente bissexual e engajado a pesquisa busca suprir uma necessidade de dados sobre esses sujeitos e suas vulnerabilidades, sendo, portanto, ela mesma um produto visado pelos sujeitos interlocutores da pesquisa.
Vozes de Encruzilhadas Indianas
Autoria: Marcos Silva da Silveira
Autoria: Meu desafio é como incorporar "vozes subalternas" (Spivak:2010) dentro de uma produção de conhecimento antropológico. Durante a minha formação em pós graduação em Antropologia, nos anos 90, realizei, na UNB, mestrado sobre a História das Umbandas e Candomblés no DF e um doutorado sobre o centenário do fundador do movimento Hare Krishna, acompanhando a delegação brasileira deste Movimento religioso até à Índia, em 1996. Durante o meu campo com os devotos Hare Krishna, entre 1994 e 1997, acabei me tornando o "Bhakta Marcos de Brasília", simultaneamente um tipo de etnógrafo e um tipo de devoto, possíveis e necessários neste campo. Entre as duas pesquisas havia uma outra presença. Para a Umbanda, o meu guia espiritual é o líder da falange do "Povo da Índia". Reconhecendo-o como uma outra consciência, externa a minha, em seus próprios termos, entendo que estive na Índia sob sua orientação nessa pesquisa do Doutorado, o que me coloca, neste momento, na intenção de trazer essas vozes, num movimento fundamental para o entendimento destas experiencias junto a esse enorme universo cultural, onde o reconhecimento dos sujeitos simbólicos se faz necessário. Só pude pensar todas estas questões a partir do atual debate Decolonial. Neste sentido, uma das abordagens mais frutíferas surgidas no Brasil, vem a ser a de dois autores Umbandistas, Luís Rufino e Luiz Antonio Simas, sintetizada na ideia da "pedagogia das encruzilhadas" (2019). Partindo da força simbólica de Exu, senhor dos caminhos e das encruzilhadas, eles propõem uma visão decolonial desta religiosidade e da experiencia afro indígena no Brasil. Uma força que desloca e dissocia os cânones consagrados do pensamento ocidental que também informam a antropologia brasileira. Pois é nas encruzilhadas onde tudo se cruza e pode se cruzar: a Antropologia com a Umbanda; A Índia com o Brasil; Exu com Shiva, a Makumba com o Trantrismo. Trazendo a noção de Rita Segato (2021) de uma "Antropologia por demanda", para este traçado, posso entender essa "demanda", a partir das Religiões de Matriz Africana, como uma necessidade de reconstituir identidades fragmentadas, num processo intelectual de reparação em seus termos simbólicos. O ponto a ser trabalhado é o que Luena Nunes Pereira (2020) problematiza sobre a posição de antropólogos/as negros/as na antropologia brasileira. Para além de um modelo abstrato de antropólogo universal, branco e ocidental, não está em jogo apenas reivindicar outras identidades, mas redefinir o que se entende por alteridade e propor novas formas de conhecimento, novas epistemologias. A partir de Luiz Rufino (2019) é possível afirmar que os saberes, como os "encantados", são forças cósmicas que incorporam novas possibilidades de vida, também através de seus autores.
"Por moradia não temos medo": uma ocupação urbana no Centro do Rio de Janeiro como um ritual insurgente popular
Autoria: Isabela Baptista Moraes Arruda de Oliveira
Autoria: O trabalho tem como objetivo analisar, a partir de uma etnografia engajada, a Ocupação Urbana Almirante João Cândido. Organizada pelo Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas a ocupação levou para um prédio centenário 150 famílias que reivindicavam "moradia digna" no Centro do Rio de Janeiro em junho de 2021. Analisado enquanto um drama social, no sentido definido por Victor Turner, debateremos aqui as etapas identificadas por Turner deste conceito e a percepção enquanto ritual insurgente popular. Por fim, falaremos sobre o processo de gentrificação que ocorre na mesma região a partir do Programa Reviver Centro, da Prefeitura do Rio de Janeiro, traçando os objetivos do projeto e os impactos do projeto.