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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT06: Antropologia da Escrita

Paulo Augusto Franco, Julian Simões

Nesse GT pretendemos fomentar a discussão crítica acerca dos regimes, práticas e usos da escrita sob o ponto de vista da antropologia e nas suas interseções com a história e os estudos literários e culturais. Assumimos a escrita como objeto e ferramenta do conhecimento, crucial para as relações sociais e central na formação e transmissão destes. Nós a concebemos como práticas - coisas que as pessoas produzem e fazem - que abrigam e expressam marcas, vozes, significados e intenções - presenças e ausências/silêncios- das pessoas que as produzem e manuseiam, no passado e no presente. A perspectiva que propomos terá em conta uma diversidade de práticas de escrita em discussões que endereçam problemas em perspectiva interseccional e em diferentes escalas: (a) as relações entre escrita e fontes de pesquisas na história; (b) entre escrita e autoria/autoridade acadêmica, etnográfica e literária; (c) os registros e arquivamentos pessoais e familiares, escritas cotidianas, as escritas de si e as (auto)biografias (cartas, diários, bilhetes, notas, blogs); (d) memórias, esquecimentos e identidades (e) os documentos escritos do Estado e da burocracia; (f) a escrita médica dos prontuários, códigos e classificações; (g) a escrita jurídica e a produção de sujeitos e seus direitos; (h) os regimes denominados linguagem simples e acessível; (i) as relações entre escrita, tecnologia e ambientes digitais, entre outras formas de escrita que produzem e reproduzem sujeitos e relações.

Palavras chave: Etnografia; Escrita; Arquivos.
Resumos submetidos
De "Policial Antropólogo" a "Antropólogo Policial": o retorno ao campo, reminiscências e percepções autoetnográficas sobre o uso da força.
Autoria: José Soares de Morais
Autoria: Trata-se de uma pesquisa, fruto da elaboração de uma tese de doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Cujo propósito se apresenta sob a forma de um olhar mais atento à utilização da força em seu nível mais extremado, pelos integrantes da Polícia Militar de Pernambuco, a partir da realização de uma autoetnografia - como forma de "escrita de si" (FOUCAULT, 1992), a qual combina características da autobiografia e da etnografia, no sentido de descrever e analisar (grafia) a experiência pessoal (auto) com o objetivo de compreender a experiência cultural (etno) (ELLIS, 2004; HOLMAN JONES, 2005), com o objetivo de investigar as impressões provocadas por suas (nossas, e minhas) atuações. É nesse contexto que me incluo enquanto integrante da organização que ainda permite a alcunha da dúvida, entre o impedir à violência, e o seu patrocínio. E me coloco como sujeito da pesquisa, que ora se fundamenta na análise interpretativa e reflexiva sobre as percepções do uso da força. A pesquisa está calcada na perspectiva teórico-metodológica fornecida pela antropologia, de caráter autoetnográfico, e cotejada num recorte empírico direcionado aos que exercem (e exerceram) suas funções em unidades denominadas de "especiais" (as quais, dentro das categorias nativas estudadas, também chamaremos de "comunidades", pois assim são conhecidas no âmbito interno do convívio profissional e da "mística" que é cultuada), com atividade em todo território pernambucano: BOPE - Batalhão de Operações Policiais Especiais (antiga 1ª CIOE - Companhia Independente de Operações Especiais) e o BEPI - Batalhão Especializado de Policiamento do Interior (antiga CIOSAC - Companhia Independente de Operações de Sobrevivência na Área de Caatinga). Cuja intenção visa compreender como as construções mentais sobre o uso da força são percebidas, em meio aos procedimentos e atitudes, e em que medida as crenças são produzidas e representadas, inclusive, incluindo o "eu" (trajetória policial militar), hoje, antropólogo, onde escrevo e analiso minhas experiências pessoais, no sentido referido por Foucault (1992, p.156): "Escrever é, portanto, "se mostrar", se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro". Enfim, para justificar esse intento autoetnográfico, ressalte-se a imersão na memória do grupo a que ainda hoje pertenço, projetando uma aventura antropológica que acena para o reviver, retraduzir, e reproduzir o horizonte de tempo onde convivi com os responsáveis pela árdua tarefa da manutenção da ordem pública em seu nível de maior criticidade, os quais chegam a introspectar o sentimento do herói descrito em Joseph Campbell (1949).
Travestilizar o heroísmo: metáforas bélicas, adoecimento e luto na escrita da biografia de Fernanda Benvenutty
Autoria: Lux Ferreira Lima
Autoria: O presente trabalho se propõe a refletir sobre uma recorrência narrativa no processo de escuta da história de vida da carnavalesca, parteira e militante travesti Fernanda Benvenutty, e de sua tradução em texto escrito por mim e minha orientadora Silvana Nascimento desde 2016: metáforas bélicas utilizadas por Fernanda para atribuir sentido à descoberta de um tumor maligno e à experiência de tratamento médico. Também tem como objetivo pensar sobre o lugar de tais metáforas após seu falecimento, e em meio à imperatividade de conclusão do projeto biográfico em face do luto e da ausência de sua idealizadora. Parte de minha pesquisa de doutorado, que se debruça em perspectiva comparada sobre a trajetória de redes de produção de conhecimento produzidas por auto/biografias elaboradas ou idealizadas por pessoas trans e publicadas no Brasil e nos Estados Unidos, nesta proposta me concentro na descrição de uma empreitada coletiva e sucessiva de inscrições que foi a articulação entre expressão oral elaborada por Fernanda sobre a própria vida e a sua passagem para o papel - bem como na interrupção brusca de tal empreitada, e na impensabilidade de sua retomada diante da morte de Fernanda em 2020. Valendo-me da autoetnografia, de pesquisa documental e de teoria antropológica acerca da morte, bem como de referências interdisciplinares sobre metáforas de adoecimento, oralitura e modelos narrativos atravessados por gênero, promovo uma reflexão em diálogo com epistemologias transfeministas que permitiu converter uma dissonância tradutória, um ruído de comunicação, em forma possível de escrita da vida, ainda que atravessada pelo sofrimento da perda. Argumento que a recusa da ausência, do esquecimento, e do protagonismo da morte na memorialização pública de Fernanda fazem parte de uma política mais ampla e sistemática de recusa de modelos representacionais da travestilidade racializada. Tal desenrolar da experiência de luto levou a um redimensionamento não só do papel da escrita biográfica como também do processo de reconfiguração narrativa da imagem de Fernanda, de sentidos de presença e ausência, e de sua interpelação que convidava à inscrição e fissura de imaginários.
A trajetória política e intelectual de Lélia Gonzalez sob uma perspectiva biográfica (e os desafios metodológicos da etnobiografia)
Autoria: Ana Carolina dos Reis Fernandes, Ana Lúcia de Castro
Autoria: A proposta deste trabalho é apresentar a articulação existente entre a biografia e a trajetória política e intelectual de Lélia Gonzalez, com as trajetórias de vida de militantes feministas negras que atuam hoje na cena política institucional do país, ressaltando a importância da pesquisa biográfica para a compreensão não apenas de um "universo" individual, mas também das possibilidades existentes no mesmo no que toca suas contribuições para as transformações sociais e políticas como um todo. Desse modo, Faremos o exercício metodológico de situar a pesquisa biográfica a partir de discussões recentes sobre o tema , ressaltando assim a importância da escrita da vida para a compreensão de uma trajetória, não no sentido individual que a expressão (biografia) acaba assumindo de modo distorcido - como se traçasse uma linearidade sobre a vida - mas também pelas possibilidades políticas e intelectuais que esta poderá apresentar.
Literatura e Autoridade Etnográfica: Diálogos Possíveis
Autoria: DÉBORAH MARIA DA CUNHA LIMA
Autoria: Esta proposta de trabalho busca apresentar relação entre escrita etnográfica e dimensão literária, meu interesse no tema surgiu a partir das leituras para minha tese e das aulas de uma das disciplinas do meu doutorado em ciências sociais. As discussões aqui pontuadas consideram, principalmente, a inclinação de Clifford Geertz e James Clifford em estabelecer afinidade entre a escrita etnográfica e as discussões da crítica literária sobre imaginação moral. Esses autores demarcam diálogo com os críticos literários da época, tornando possível uma relação entre antropologia e literatura. Especificamente, seus textos fazem referências a Lionel Trilling, crítico literário estadunidense. A perspectiva literária da abordagem etnográfica pode trazer consequências nos paradigmas do campo antropológico. As discussões sobre a representação das culturas e a autoridade etnográfica, tendo como pano de fundo uma abordagem sobre a escrita e referências literárias, parecem ter destaque em Geertz e Clifford. Traçamos alguns aspectos sobre esse possível diálogo entre literatura e escrita etnográfica. Inicialmente, objetivamos enquadrar o debate etnográfico dentro da perspectiva literária que considera as construções semânticas das narrativas, dando prioridade a dimensão da representação do real. A partir daí, aproximamos o tema da autoridade etnográfica, ou seja, das mudanças no campo antropológico e dos recursos de escrita e linguagem, dando destaque ao diálogo de Clifford e Geertz com as questões trabalhadas por Lionel Trilling. Na formação da identidade do antropólogo, ocorre a distinção científica em detrimento dos viajantes e missionários que também tinham uma experiência no campo e escreviam seus relatos. O estabelecimento da autoridade etnográfica traz mudanças nos recursos literários utilizados nos relatos, bem como em seu caráter editorial. Geertz trabalha as noções de estética e imaginação moral, sendo esta uma concepção utilizada por Trilling para tratar da literatura europeia moderna. Clifford também utiliza o conceito de imaginação moral, além das noções da desintegração do eu e do seu caráter fictício e modelado, ao analisar a experiência de Bronisław Malinowski na escrita dos Argonautas do Pacífico Ocidental.
Mitos, encontros, e outras falas, a grafia da vida social Jamamadi
Autoria: Hugo Ciavatta
Autoria: Quem conta os mitos ameríndios produz uma grafia da vida social ameríndia? Com a pesquisa de campo com os Jamamadi do Alto Purus, mais especificamente de Massekury, o objetivo de minha proposta é, conceitualmente, explorar a noção de momento etnográfico (STRATHERN, 2014), ao lado da descrição de um encontro tenso de Mauani, contadora dos mitos de seu povo, com Tatiarabu, ex-Pajé da mesma comunidade indígena, encontro este, claro, que pude acompanhar. Com isso, contar os mitos, ocupar a posição de quem conta os mitos, mediar o conhecimento então se tornaram artefatos de análise e da escrita antropológica para os quais eu me volto desde então, e que me permitem eliciar relações (WAGNER, 1986) de outros encontros, de outras falas vivenciadas durante a pesquisa. Aquele encontro, desse modo, tornou-se uma performance de Mauani, conectando muitas imagens, muitos acontecimentos; a reação de Tatiarabu e as questões, as repetidas questões que ele direcionou à pesquisa ao longo de nossa convivência; as demais práticas de Mauani, suas atividades, suas "histórias de antigamente", ou seja, os mitos Jamamadi, quando, onde e como aparecia Mauani em meio às relações na aldeia de seu povo, tudo isso compõe uma grafia (KOFES, 2014) da vida social indígena que a escrita antropológica procura acompanhar.