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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT12: Antropologia das Relações Humano-Animal

Andréa Osório, Flávio Silveira

O campo das relações humano-animal, ou Animal Studies, teria emergido na década de 1970 em meio a movimentos de proteção animal que, não obstante, remontam ao século XIX. Na verdade, os animais participam das análises antropológicas há muito tempo. Algumas análises identificaram dois paradigmas correntes: um que pode ser chamado de materialista, em busca do animal "real"; e outro semiótico, pós-estruturalista ou simbólico, em busca de representações. Mais recentemente, a emergência de reflexões sobre o perspectivismo ameríndio realçou a centralidade dos animais em aspectos da vida religiosa e cosmológica de populações ameríndias, com um forte impacto nas conhecidas relações entre natureza e cultura. O presente Grupo de Trabalho pretende ser um espaço para reflexões teóricas e pesquisas empíricas acerca das relações entre animais humanos e não humanos, a partir de um viés antropológico. Serão aceitos trabalhos tanto sobre as percepções simbólicas quanto sobre relações concretas materiais entre ambos. Entre eles, destacam-se produções voltadas aos animais de estimação, de abate, de tração, animais da fauna silvestre brasileira ou estrangeira, caça, criações, rinhas, concursos, turismo, animais de laboratório; em meio urbano, rural ou entre populações ameríndias e mesmo fora do continente americano; relações cotidianas, científicas, religiosas, alimentares, ideológicas, morais, artísticas, legislação, políticas públicas, saúde, entre outras possibilidades.

Palavras chave: Relações humano-animal; multiespécies; simbolismo.
Resumos submetidos
O Ethos Camponês: moralidades, sentimentos e afetos envolvidos nas relações entre humanos e não-humanos no mundo rural brasileiro
Autoria: Monique Batista do Nascimento
Autoria: Nas sociedades ocidentais modernas, as discussões em torno da violência e sofrimento causados aos animais têm gerado debates sobre uma responsabilização moral dos humanos em garantir o bem-estar das outras espécies. O movimento em defesa dos animais vai além ao propor uma sensibilidade ecológica que busca cessar as atividades de exploração animal e outorgar-lhes direitos básicos aos moldes dos direitos humanos. Fazendo uso dos saberes científico-filosóficos, esses grupos postulam críticas à formulação da racionalidade enquanto um critério fundamental para a distinção entre humanos e não-humanos, acusando tal premissa de causar a submissão e morte dos animais. Neste sentido, eles procuram impor novas formas de agir e pensar ao reivindicar uma alteração conceitual a respeito da realidade ontológica dos animais, encarando-os como sujeitos morais dotados de consciência. No entanto, a partir das contribuições etnográficas sobre o mundo rural brasileiro, podemos observar que é justamente por pertencerem à uma comunidade moral que se há uma necessidade de matar certos animais em contexto campesino. As formas de violência permitidas contra os "bichos de criação" e/ou os "bichos do mato" são formuladas e reformuladas cotidianamente por uma gama de possibilidades de relação intersubjetiva entre humanos e não-humanos. Além do mais, é preciso levar em consideração que as manifestações de afeto e simpatia com os animais, tanto em contexto campesino quanto na ética dos defensores, possuem uma escala de valor que se define a partir de seu suposto grau de proximidade com a espécie humana. O antropocentrismo vai, portanto, constituir tanto as sensibilidades ecológicas quanto a ética camponesa. Sendo assim, o presente trabalho tem como proposta entender, a partir de etnografias sobre o mundo rural brasileiro, os afetos cotidianos com relação ao sofrimento animal, focando em como a morte dos não-humanos são mobilizadas no universo campesino, apontando aproximações e distinções da ética dos defensores. Para isso, será necessária uma análise das relações cotidianas entre humanos e não-humanos no ambiente rural, para refletirmos sobre como é construída uma concepção ética em torno dos animais - e também direcionada a eles - e para entendermos como as ambiguidades e contradições se conectam com a forma em que os sentimentos e afetos são geridos. Vale ressaltar ainda que a relação entre humanos e animais, especialmente os de "criação", também nos ajuda a compreender estratégias individuais e coletivas das comunidades campesinas no que diz respeito à reprodução familiar, relações de trabalho, festividades e rituais religiosos, formas simbólicas de classificação espacial de gênero, dentre outros, compondo, assim, um amplo universo de discussão a respeito do ethos camponês.
Os Segredos que as Águas Escondem: Cartografias Antropológicas do Mar
Autoria: Fagner Carniel, Eliane Sebeika Rapchan
Autoria: As chamadas "Blue Humanities" ou "Oceanic Humanities" foram constituídas nos anos recentes como uma resposta crítica às dualidades modernas que constituem o pensamento ocidental. Para isso, propõe outras maneiras de mergulho no mar que enfatizam as relações históricas, culturais, sociais e políticas entre humanos e outros seres a partir de perspectivas inspiradas em concepções de fluidez, fluxo, rotas e mobilidade. Desse modo, as relações entre coletividades humanas e o mar passaram a incluir outros entes, tais como os peixes e moluscos, mas também as areias, o mangue, os ventos e as marés. Essas relações contemplam atividades de produção da vida por meio da pesca, da arte, da culinária, do culto, da organização familiar, concepções de espaço, de memória e de tempo. Nesta comunicação, procuramos refletir sobre o modo como tais perspectivas poderiam dialogar com o ensino a fim de contribuir com futuros diagnósticos que favoreçam a sensibilização de estudantes e promovam a inclusão de repertórios inspirados em saberes, artes e técnicas produzidos por populações litorâneas. O objetivo é estimular a incorporação de percepções e conhecimentos oriundos das epistemologias litorâneas do sul para contribuir com a visibilização de outros modos de partilha de territórios e de recursos marítimos que considerem o direito das comunidades multi espécies que habitam os litorais e promover iniciativas que possam mitigar os efeitos do aquecimento global e da destruição ambiental. Palavras-chave: teoria antropológica, pós-antropoceno, mar, oceanização do ensino.
Um polihíbrido no sertão do Piauí: apontamentos sobre o encontro entre humanos e abelhas em condições precárias
Autoria: Rebeca Hennemann Vergara de Souza
Autoria: Atualmente, as abelhas ocupam o centro de um importante debate sobre capitalismo, ecologia e sobrevivência. A transformação dos produtos das abelhas em commodities alterou a natureza, compreendida nos termos propostos por Anna Tsing. O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação entre as abelhas africanizadas e o capitalismo, focando as relações históricas no semiárido piauiense no Antropoceno. Para tanto, nos valemos de dados secundários, através de pesquisa bibliográfica, e de pesquisa de campo, realizada com apicultoras e apicultores do semiárido no Estado do Piauí. As abelhas africanizadas chegaram ao Piauí no final dos anos 1960. Esse inseto é uma novidade biológica e sociocultural não intencional, de múltiplos encontros, humanos e não humanos. Sua chegada produziu o cercamento das terras e, enquanto essas abelhas migravam, os sertanejos circulavam menos livremente entre as terras agora cercadas. A descoberta do potencial econômico do mel dessas abelhas agenciou uma série de atores coletivos, estatais e privados, produzindo uma cadeia produtiva e um arranjo econômico e uma nova figura humana, o apicultor. O mel se tornou produtor de realidades sociais no Piauí, como renda e oportunidades de vida, mas também se ajustou a formas de vida já existentes, como a divisão sexual do trabalho no campo. A sinergia entre a hibridização genética, a diversidade e abundância de flora apícola e a profissionalização do apicultor não apenas representou uma oportunidade comercial. Progressivamente, representou a apreensão das abelhas pelo agronegócio, as introduzindo no rol das "plantations de ecologias simplificadoras". Ao mesmo tempo, as abelhas estão desaparecendo. De um lado, isso produz precariedade, distribuindo desigualmente o bem estar econômico advindo da apicultura, bem como as oportunidades de reagir ao avanço do agronegócio. De outro lado, nos confronta com aquilo que Judith Butler nos provocou a enxergar, as possibilidades de uma existência precária como condição de uma vida boa em uma vida ruim. Quanto mais o projeto colonial/neoliberal representa Caatinga como inóspita e improdutiva, mais as estratégias de colaboração mútua são afetadas. O sucesso da abelha africanizada no semiárido nordestino é o sucesso de um polihíbrido capaz de se manter em movimento, curto e longo, e se adaptar às condições locais. Da mesma forma, as pessoas vivem apesar e contra o projeto colonial, produzindo outras formas de vida, não apreensíveis pela lógica colonial, produzindo e sendo produtoras de uma diversidade contaminada. A comunidade de humanos e não humanos no semiárido é, então, um rastro da possibilidade de afirmação da condição precária como existencial e do trabalho criativo possível diante das precariedades.
Relações humano-animal e a convivência com as secas no sertão do Nordeste brasileiro
Autoria: Janice Alves Trajano, Guilherme Rodrigues de Rodrigues
Autoria: Durante anos utilizou-se o termo "combate às secas". Contudo, recentemente ocorreu uma mudança de paradigma ao tratar a questão, passando-se a falar em "convivência" com as secas. Ou seja, os humanos devem se relacionar com o meio de forma harmônica, entendendo que tentativas de sobreposição a elementos não humanos conjecturam um esforço que gera poucos resultados satisfatórios ao ambiente como um todo. Por esse motivo, a seca se constitui como um desastre ambiental que tem agravamento antropogênico. Tentativas humanas de controle da paisagem do sertão a partir de métodos pouco adaptados ao meio exigem o uso de insumos que degradam o ambiente, trazem malefícios à saúde das pessoas e, ainda, não garantem a segurança alimentar da população. Enquanto isso, formas de cultivo e criação tradicionais se perdem devido à tecnificação da agricultura, pautada por concepções limitadas sobre desenvolvimento, alinhando-se a valores do capitaloceno. Nesse cenário, a pesquisa propõe analisar relações humano-animal em situações de seca como desastre ambiental. O sertão é pesquisado há décadas por antropólogas/os brasileiras/os, versando sobre relações de trabalho, parentesco e constituição de patrimônio, a exemplo dos trabalhos de Beatriz Heredia (1979), Maria Ignez Paulilo (1987), Ellen Woortmann (1995) e Ana Claudia Marques (2002). No entanto, na última década, tem crescido na antropologia o interesse nos estudos multiespécies (SUSSEKIND, 2018; DOOREN, 2016), assim como a perspectiva do antropoceno (TSING, 2019). Novas metodologias de produção e análise de dados conduzem a uma forma inovadora de compreensão do campo de pesquisa proposto: o sertão paraibano. Voltando-nos aos estudos com animais, Vinciane Despret (2016) chama a atenção à possibilidade de humanos, incluindo aqueles pesquisadores, se transformarem com os animais, em co-becoming, reconhecendo a potencialidade deles como seres que possuem capacidades distintas das humanas. O cuidado, a atenção e a responsabilidade dessas relações são agregadoras ao debate sobre a ética da reciprocidade ecológica. Eduardo Kohn (2016) sugere uma antropologia da vida que abrange relações humano-animal de forma para além da cultural, incluindo a dimensão biológica, mas que essa não se restrinja aos corpos. Comunicação, políticas, negociações e maneiras de exceder os limites de ser humano ou de ser animal são aspectos relevantes a serem explorados. Por fim, Donna Haraway (2016) utiliza o termo "chtulucene" para categorizar uma forma de encontrar o espaço para apreender a permanecer com o problema, desenvolvendo "response-ability", ou habilidade de respostas, ao lidarmos com uma Terra ferida. Com esses pressupostos, buscamos reflexões relevantes aos estudos de composições multiespécies nas secas do sertão.
TEMPO "BODÍSTICO": a interação do tempo entre animais humanos e não humanos
Autoria: Mauricio Guedes de Melo Júnior
Autoria: Ao chegar na cidade de Cabaceiras, anfitriã da maior festa brasileira em homenagem ao caprino, A Festas do Bode Rei, com o intuito de descrever a relação que a população tem com o bode, observei, na verdade, uma interação entre caprinos e humanos. O primeiro ponto de reflexão, se deu pela noção de tempo, que para o cabaceirense, é vista a partir da natureza do animal não humano. Se minha rotina é pautada pelo calendário gregoriano e pela "hora de relógio", no município em questão, o tempo é do bode/cabra. De laboro à festividade, o animal humano se guiará pela lógica do "tempo bodístico". Desse modo, o presente trabalho visa descrever a noção de tempo entre caprinos e humanos, no município de Cabaceiras-PB. E por discussão central, a noção de tempo e como ele é entendido pelo local. Descrevo como o tempo ecológico é utilizado para nortear as atividades da cidade. Esse tempo, que chamarei de bodístico, mostrou-se norteador para as atividades da Roliúde Nordestina. Na primeira parte do estudo, discutirei os termos "tempo ecológico" e "tempo moderno" tomando como inspiração a obra clássica, Os Nuers, do antropólogo inglês E. E. Evans-Pritchard, e no segundo momento, trago uma descrição etnográfica de como a população humana pauta sua rotina a partir do ciclo de vida do bode/cabra. Descrevo como a população utiliza a noção de tempo ecológico para programar suas escolhas em torno das celebrações, laboro e calendário. Tudo parte desse tempo, a festa do Bode Rei é programada para o período que o animal está com a pelagem mais bonita, o laboro inicia-se e termina com o cortejo do bode pelo pasto nativo do cariri, o artesanato se ajusta ao período de embelezamento da pelo, e o comércio alimentar segue o ritmo natural do animal para utilização da carne e do leite. Por fim, concluo propondo uma reflexão referente a terminologia relação e interação, a partir da vivência no cariri paraibano.
Memórias de borboleta e outras memórias: um estudo sobre a reestruturação da coleção entomológica do museu nacional - ufrj
Autoria: Líbera Li de Lima Nunes
Autoria: Também as borboletas e mariposas apresentam memória, capacidade que perpassa até mesmo seu processo de metamorfose. Durante a fase de casulo, os tecidos do corpo da lagarta se reorganizam na forma de indivíduo adulto. Em alguma parte desse processo certas aprendizagens se mantêm. Sob a inspiração do artigo de Douglas Blackiston (2008), que testou a hipótese de que Lepidópteros, grupo de insetos que inclui borboletas e mariposas, apresenta memória associativa. Ou seja, pode recordar por associação. E de uma lembrança pessoal na qual guardei uma borboleta em um caderno por 20 anos e ela permaneceu com suas cores íntegras; passei a refletir sobre a formação da memória em grupos não-humanos, humanos, suas relações e o quanto dura o corpo de uma borboleta guardada. Por conta disso, esta pesquisa retoma minha formação como bióloga, desbravando a antropologia da ciência, a fim de estudar a reconstrução da coleção de Lepidopteros do Museu Nacional da UFRJ. Trata-se de uma coleção reconhecida, a 3ª maior da América Latina, e que perdeu 98% do seu acervo no incêndio de 2018. Trago aqui uma proposta de diálogo entre ciências, as sociais e as biológicas, ao elaborar a temática do patrimônio de um Museu de História Natural em seu processo de renascimento. Contudo, reconstruir caracteriza estar em um outro tempo do que quando foi construída. O Museu Nacional iniciou sua coleção entomológica no século XIX, as perspectivas eram outras. Iniciar novamente significa novas técnicas e novas prioridades. A coleção só existe por conta da borboleta e da mariposa e de sua interação com o cientista e o museu só existe por conta da coleção e essas relações são influenciadas por aspectos como a política. Não falo apenas do ambiente do laboratório e da história científica, mas da questão afetiva com a instituição, da memória coletiva e individual, assim como da memória carregada na coleção em si e do papel que o próprio animal pode ter nesse processo de emaranhamento. Desse modo, a partir do trabalho de campo e da descrição etnográfica das atividades do Laboratório de Pesquisa em Lepidopteros do MN, no qual possuo vínculo como estagiária, discuto a questão da fragilidade da borboleta, enquanto objeto de trabalho do cientista no âmbito da salvaguarda, o aspecto da perda e da reconstrução da coleção como importante para o que chamamos de preservação da biodiversidade e manutenção de uma história evolutiva, e a perspectiva da reestruturação da coleção para o curador. Falar de memória é falar principalmente de esquecimento, visto que lembrar é um ato eternamente preso em sua incompletude, assim como o colecionar. Contudo podemos falar do que se consegue guardar e do que se guarda para direcionar próximos voos.