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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT27: Como morrem as políticas públicas: etnografia de transições de governo e de (des) montagens políticas

Taniele Rui, Flávia Melo

Transições de governo se caracterizam pela escolha de políticas públicas a serem ou não continuadas. Porém, a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do país tem radicalizado esse processo. Mais do que o enfraquecimento, está em curso o desmonte de políticas públicas consolidadas em governos anteriores. E, embora mais evidentes e abrangentes no âmbito federal, também ocorrem nas outras esferas de governo (municipal e estadual), a depender de dinâmicas locais e articulações com a gestão federal. Mas, se esse processo pode ser atestado e denunciado - como muito se tem feito -, pouco se reflete de modo etnográfico sobre como morre uma política pública. Como se desmonta/monta um programa de governo? Como se erguem políticas sobre as que foram destituídas ou ajustadas às novas prioridades e programas de governo? Quais atores, técnicas, tecnologias e redes envolvidas nesse processo? Quais os campos de resistência e tensão? Como se verificam os desdobramentos do que foi interrompido? Que novas montagens se observam? Que continuidades se notam nesses processos? Como descrevê-los? Este GT convida trabalhos que, a partir de temas e pesquisas específicas, dedicaram atenção etnográfica a essas questões. Interessa-nos abordagens de políticas indigenistas, de saúde, educação, assistência social, segurança pública, gestão prisional, direitos sexuais e reprodutivos, dentre outras comprometidas com a descrição desses processos e inseridas no contexto dos últimos anos.

Palavras chave: Políticas públicas; Antropologia do Estado/Política; Rupturas/Continuidades
Resumos submetidos
" Viver como uma bolsa, dá?: uma etnografia das trajetórias de mulheres do Programa Bolsa Família em Santa Luzia, Ceará
Autoria: Antonio Jefferson Lopes Martins
Autoria: Este artigo busca compreender as possíveis mudanças, e também permanências, nas trajetórias de vida de cinco mulheres residentes em um bairro periférico de uma cidade cearense com o recebimento do Programa Bolsa Família (PBF). Sendo uma política focalizada, voltada para as famílias pobres e extremamente pobres, as mulheres são consideradas como prioritárias na concessão desse auxílio financeiro. Para compreender essas trajetórias, tomei como referência os documentos produzidos pela gestão local da referida política no Centro de Referência da Assistência Social Família Cidadã ( CRAS), onde essas usuárias realizaram seus cadastros e acessaram esse programa, entrevistas com os (as) profissionais envolvidos (as) na implementação do PBF no município e na realização de entrevistas com essas usuárias nos seus domicílios. Todas as entrevistadas residem no bairro Santa Luzia, local com precário acesso aos serviços públicos de saúde, educação, lazer e saneamento básico. Mesmo não sendo uma política de gênero, o Bolsa Família tem como prioridade a concessão de um auxílio financeiro para as mulheres enquanto responsáveis por seus familiares. A depender da dinâmica familiar elas acumulam atividades de cuidado e proteção mesmo com a presença do seu companheiro. Nessa perspectiva, as mulheres entrevistadas sentem-se "donas de seus lares", ganham uma certa autonomia em suas vidas, no sentido que Rego e Pinzani (2014) usa esse termo, mas não há alterações das atividades tidas para "mulheres" e "homens" no âmbito doméstico com o recebimento dessa bolsa por elas. Dada a importância dessa política até mesmo para a sobrevivência familiar, identifiquei maiores dificuldades de superar a condição de penúria para as mulheres chefes de família de lares monoparentais, sobretudo, quando essas são negras e pobres.
Do governo Bolsonaro ao SUS "da ponta": política de morte, pandemia e usuários
Autoria: Otávio Fabrício Lemos Corrêa Maia
Autoria: Qual é a relação entre política e morte? Qual é a repercussão da gestão em saúde do governo Bolsonaro, quanto ao SUS "da ponta"? Dito de outra maneira, como os estilhaços do poder, e aqui eu me refiro ao poder político em sua organização e formas de ocupação do Estado, têm alcançado corpos pretos e sem renda nas suas experiências concretas com o SUS? O Estado mata. Mas mata a quem? No presente artigo, tenho como foco analisar os efeitos que a gestão em saúde do governo Bolsonaro tem causado sobre o serviço de Atenção Primária à Saúde, do bairro Parque das Torres, localizado no município de Juiz de Fora, Minas Gerais. A discussão apresentada no artigo fundamenta-se na etnografia da pesquisa do curso de doutorado, em andamento, realizado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, em que estudo a área de tensão entre o SUS legislado e o SUS vivido. Nesta pesquisa, tenho acompanhado a rotina de funcionamento da Secretaria de Saúde de Juiz de Fora, entrevistando gestores de saúde e também investigando usuários e profissionais de saúde que vivenciam o SUS "da ponta". A partir da experiência que tive como agente comunitário de saúde, entre 2003 e 2009, no bairro Parque das Torres, lanço mão de um duplo posicionamento e uma dupla temporalidade, ora falando do lugar de pesquisador, ora recorrendo a memórias do trabalho de agente comunitário de saúde, para então discorrer sobre a temática em pauta, o SUS vivido e os efeitos da gestão em saúde do governo Bolsonaro. O contexto da pandemia de Covid-19, no Brasil, colocou em destaque o SUS, o SUS que veio a público, principalmente por conta da importância do sistema público de saúde no processo de vacinação. Entretanto, a postura do governo federal em relação à pandemia, seja panfletando o seu negacionismo, ou pela sua incapacidade técnica na gestão da doença, teve repercussões sobre o SUS, efeitos que propusemos discutir neste trabalho, ao etnografar os caminhos e os fluxos existentes entre a política do governo federal e o posto de saúde do bairro Parque das Torres, o SUS "da ponta".
Estratégias, entusiasmos e frustrações: a implementação do Previne Brasil em Sobral/CE.
Autoria: Alana Aragão Ávila
Autoria: Considerando o avanço de políticas de restrição orçamentária no campo da saúde, entendidas aqui como reflexo do emparelhamento de governos com formas de racionalidade neoliberal, busca-se neste artigo elaborar discussões sobre os primeiros meses da implementação do Previne Brasil no município de Sobral/CE. Partindo de pesquisa etnográfica, com base na Teoria Ator-Rede, busca-se compreender as formas de organização da Atenção Primária à Saúde (APS) em Sobral frente às novas demandas inauguradas pelo Previne Brasil, em suas metas, indicadores e burocracias. Assim, com o auxílio de entrevistas com profissionais que atuam na APS discute-se quais as estratégias de gestores e funcionários tem utilizado para contornar o desfinanciamento dos serviços e a transformação da APS a partir de novas formas de burocratização, precarização e produtivismo. Tornando visível parte da rede sociotécnica que é produzida continuamente na relação entre a APS e o Previne Brasil é também nas resistências e descontentamentos que se explora os efeitos das tentativas de esvaziamento do Estado brasileiro em sua responsabilidade de oferta de saúde em caráter universalidade, equidade e integralidade.
ENTRE A LUTA E O SER FAMÍLIA: Desmonte Das Visitas E Assistência Familiar Ao Internos Do Complexo Penitenciária Da Mata Escura Em Salvador
Autoria: Rebeca de Souza Vieira
Autoria: Diante do contexto de pandemia da covid-19 iniciado no Brasil no primeiro semestre de 2020 diversas dinâmicas sociais foram sendo alteradas, mas em alguns contextos, como no prisional e em seu entorno as restrições sanitárias ampliaram cóleras pré existentes e criaram novas formas de violações. O presente trabalho abordará as experiências vivenciadas por familiares de pessoas em restrição de liberdade no Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador, ativistas contra o encarceramento que enfrentam bloqueios de acesso e de manutenção assistencial básica a seus parentes neste período. As visitas, expressam as manifestações dos vínculos afetivos e a manutenção da vida dos presos. Os bloqueios e a falta de diálogo com os familiares foram ampliados desde março de 2020 até agosto de 2021, porém após um mês dessa abertura, os diretores das instituições prisionais do Complexo criaram novas restrições de acesso baseados nas propagação do vírus da covid-19, gerando uma insegurança sobre as visitas com o apoio operacional da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SEAP). Assim, a partir do questionamento sobre como o contexto pandêmico tem influenciado na ampliação e manutenção de uma políticas de bloqueios e violações contra os familiares e seus assistidos nessa unidade prisional. Com o objetivo de observar, descrever e analisar as consequências das violações por trás de uma suposta segurança sanitária a partir da visão dos familiares.
Etnografia de um índice de pobreza multidimensional
Autoria: Rogério Schmidt Campos
Autoria: Em 2011, poucos meses após o início do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, o Plano Brasil Sem Miséria (BSM) foi lançado com a promessa de erradicar a pobreza extrema no país até o ano de 2014. O Plano foi desenhado no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), e gerido pela recém criada Secretaria Extraordinária de Combate à Extrema Pobreza (SESEP/MDS). Concomitante à implementação do BSM, em 2011 um grupo de técnicos governamentais incitava o debate para a implementação de um índice de pobreza multidimensional brasileiro. Os índices de pobreza multidimensionais são representações numéricas sobre uma parcela da população, em sua maioria calculadas a partir da média de dimensões relacionadas à pobreza, não necessariamente agregando dimensões de renda ou consumo, mas priorizando acessos à serviços estatais como saúde, educação, bem como abarcando outras dimensões mais subjetivas e relacionadas a padrões de vida. A dificuldade da sua implementação deriva da complexidade em definir o conceito de pobreza agenciado entre seus idealizadores e as dimensões que dizem respeito a essa definição. Este trabalho versa sobre a tecelagem de um índice brasileiro de pobreza multidimensional. Um indicador social inacabado e em constante disputa por tratar de um dos temas de maior apelo político para governos nacionais, qual seja, o delineamento de uma parcela da população em situação de pobreza. Um índice aparentemente simples em conceito e forma, mas possivelmente revelador de uma complexa malha tecida por sujeitos e documentos em suas ideações conceituais. Uma representação que pretende sintetizar formas de vida, ao passo que aparenta produzir sua escassez. Pretendo refletir sobre esse processo, entendendo o índice como uma tecnologia de governo, por meio da compreensão das técnicas de cálculo, aspectos morais e associações sociotécnicas envolvidas entre esses sujeitos e seus conhecimentos, os documentos que produzem, e linguagem que os diferencia na produção dessa diferença. De que maneira os sujeitos traduzem os aspectos morais compartilhados sobre uma alteridade - pobreza - em fórmulas e medições dentro de uma linguagem especializada que produz uma divisão social entre pobres e não-pobres? Como essa linguagem se movimenta conforme o contexto político-econômico das gestões que articulam e produzem essas discussões? Quais conhecimentos e percursos técnicos são necessários e disseminados entre esses sujeitos? Quais as moralidades envolvidas nessas técnicas? Quais efeitos esse processo produz? A partir dessas inquietações apresento minha versão sobre o desenho de um indicador em disputa, apesar da sua interrupção.
OÁSIS POLÍTICO EM MEIO AO DESERTO CONSERVADOR: Uma etnografia da ocupação da Casa da Mulher Brasileira de São Luís
Autoria: Maynara Costa
Autoria: A Casa da Mulher Brasileira de São Luís/MA é um espaço público que concentra tanto serviços do poder judiciário, quanto atendimento psicossocial, além de programas que visam incluir mulheres vítimas de violência no mercado de trabalho. A construção da Casa da Mulher Brasileira em São Luís aconteceu em um momento de transição do governo da Presidenta Dilma Rousseff e Michel Temer, possibilitando que o poder público (maranhense) se transformasse a partir das ações das suas administradoras e dos seus órgãos, intervindo no cotidiano das pessoas e como elas atuam com e pelo Estado (DAS & POOLE, 2008). A Casa, deste modo, não se basta em existir enquanto serviço público, tatuado em um decreto. Ela teve que ser habitada e habitar o Estado a partir das suas intervenções, vivências, dos relacionamentos do serviço com as usuárias; das usuárias com os profissionais dos órgãos; dos órgãos com os movimentos de mulheres e de famílias das mulheres vítimas de homicídio qualificado por feminicídio. Assim, essa comunicação pensa, a partir de uma perspectiva etnográfica, como se deu a criação e a ocupação do serviço, a plasticidade do trabalho dos seus administradores no uso das novas leis e de novas formas de servir, além de discorrer sobre como as redes de enfrentamento e atendimento são construídas, mantidas e organizadas.
Uma política do agressor externo
Autoria: Natã Souza Lima
Autoria: Este trabalho surge como um excerto e minha pesquisa de doutorado sobre violências sexuais intrafamiliares no Amazonas, principalmente contra crianças e adolescentes. Um dos pontos de partida da pesquisa é a etnografia sobre como Estado e Comunidade lidam com os agressores sexuais, distinguindo-os a partir dos contextos e relações onde/contra quem as violências possam ter ocorrido. Entre meus registros, noto maior recorrência de agressões, linchamentos e assassinatos contra homens acusados de violências sexuais fora da família (ou seja, sem vínculo de parentesco com as vítimas). Contudo, os dados nacionais (Ministério da Saúde em 2018 e MMDFH em 2020), assim como os registros locais em órgãos da justiça e assistência social, demonstram que pelo menos 80% das violências sexuais ocorrem em família - com vínculos de parentesco entre agressores e vítimas. Com a posse de Bolsonaro em 2018, e a nomeação de Damares Alves para gerir o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), houve um apagamento das formas de registro dos dados estatísticos sobre violências sexuais, e principalmente, do registro dos vínculos entre agressores e vítimas, ao passo que houve maior investimento em cartilhas, diretrizes e operações que privilegiam a família como lugar da proteção e instauram uma "política do agressor sexual externo", na figura do "pedófilo" e produção de pânicos morais (Lowenkron, 2015). É no exame das diferenças e aparentes contradições sobre quem são os "agressores sexuais", entre dados oficiais dos órgãos de justiça e assistência social, práticas cotidianas e políticas de gestão do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que se insere a presente proposta.
Lei Rouanet: Disputas e moralidades em torno do financiamento à cultura no Brasil
Autoria: Pâmela de Souza Costa
Autoria: O fazer cultural foi posto em questão no Brasil desde 2016. O financiamento da cultura por meio de leis de incentivo, especialmente a Lei Rouanet, tem sido alvo de intensa controvérsia na arena pública. Diante disso, discuto a relação entre o ataque à Lei Rouanet e o crescimento de um discurso criminalizador do fazer cultural por parte de grupos neoconservadores. Seguindo a proposta, busca-se destacar que a relação entre esses dois tipos de acontecimentos se organizam em permanentes disputas e tensões, que apontam para a definição de formas "corretas" de utilizar a Lei em relação a "outras" formas particulares de usos, ancorados em valores morais.