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ISBN: 978-65-87289-23-6
MC03. Ritual, performance e etnografia: abordagens contemporâneas

Luciana Gonçalves de Carvalho, John C. Dawsey, Maria Laura Cavalcanti

O curso versa sobre o lugar e a contemporaneidade dos estudos antropológicos de rituais e performances tomando por ponto de partida a obra de Victor Turner, um dos protagonistas da chamada “virada performativa” ocorrida entre os anos 1970 e 1980 na antropologia. Ocupando um lugar heterodoxo no contexto da antropologia social inglesa, a etnografia realizada por Turner entre os Ndembus nos anos 1950 mobilizou de modo inovador conceitos como drama social, símbolo ritual, liminaridade e communitas. Mais tarde, a partir do encontro com o diretor teatral Richard Schechner, Turner elaborou uma antropologia da performance e, inspirado pela noção de comportamento restaurado de Schechner, propôs uma antropologia da experiência. Performance e experiência, palavras que remetem ao vocábulo indo-europeu per e à ideia de perigo, tornam-se inseparáveis na perspectiva de Turner, para quem a performance constitui expressão de uma experiência marcante, de quem corre riscos. Suas contribuições à antropologia trouxeram novo fôlego aos estudos de rituais e simbolismo e, até a atualidade, fomentam o diálogo antropológico com a linguística, a literatura, a etnomusicologia e com as artes dramáticas e plásticas, entre outras. Este minicurso abordará: a heterodoxia da obra de Turner e sua abertura para novas direções, os desdobramentos de sua relação com Schechner na constituição de uma antropologia da performance e da experiência, e, por fim, etnografias inspiradas no diálogo entre esses dois autores.

Resumos submetidos
Aula: Victor Turner e Antropologias da Experiência e Performance
Autoria: John Cowart Dawsey
Autoria: Nesta aula, nos deparamos com um conjunto de textos exploratórios, pouco traduzidos, onde se encontram esboços de uma antropologia da performance e da experiência. São esses possivelmente os escritos menos conhecidos de Turner. Duas possíveis leituras desse momento na obra do autor se sugerem, ambas características de um rito de transição. Por um lado, a diminuição de vitalidade do pesquisador (a experiência de tomb): o distanciamento em relação ao trabalho etnográfico. Por outro, um renascimento (womb): Turner se permite correr novos riscos. Questiona-se. Interesses que se alojam em substratos de sua experiência afloram. Ganham força. Daí, a passagem do ritual ao teatro. E o encontro de Turner com Richard Schechner. Há indícios dessa inflexão na antropologia de Turner no prefácio de Dramas, fields and metaphors (Dramas, campos e metáforas), publicado em 1974, onde se discute a noção do “liminóide”. Mas, os seus desdobramentos mais expressivos, onde se configuram a antropologia da performance e da experiência, aparecem nos anos de 1980, com a publicação de From ritual do theatre: the human seriousness of play (Do ritual ao teatro: a seriedade humana da brincadeira), em 1982, e de dois textos póstumos: The anthropology of performance (A antropologia da performance), em 1987, e “Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience” (“Dewey, Dilthey e drama: um ensaio em antropologia da experiência”), em 1986. Evidencia-se nesses trabalhos uma premissa de fundo: a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia da experiência (Turner 1982: 13). Através do processo de performance, o contido ou suprimido revela-se – Wilhelm Dilthey usa o termo Ausdruck, de ausdrucken, “espremer”. Citando Dilthey, Turner descreve cinco “momentos” que constituem a estrutura processual de cada erlebnis, ou experiência vivida: 1) algo acontece ao nível da percepção (sendo que a dor ou o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que comportamentos repetitivos ou de rotina); 2) imagens de experiências do passado são evocadas e delineadas – de forma aguda; 3) emoções associadas aos eventos do passado são revividas; 4) o passado articula-se ao presente numa “relação musical” (conforme a analogia de Dilthey), tornando possível a descoberta e construção de significado; e 5) a experiência se completa através de uma forma de “expressão”. Performance – termo que deriva do francês antigo parfournir, “completar” ou “realizar inteiramente” – refere-se, justamente, ao momento da expressão. A performance completa uma experiência (Turner 1982: 13-14). A figura de Dilthey aqui lampeja como uma espécie de espírito ancestral. Tal como num rito de cura, Turner nela encontra formas de lidar com a crise de nossa época: a dificuldade de significar o mundo. Nesta aula pretende-se focar três obras de Victor Turner (duas delas, póstumas): From ritual do theatre: the human seriousness of play (1982); “Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience” (1986); e The anthropology of performance (1987).
Riso popular e performance
Autoria: Luciana Gonçalves de Carvalho
Autoria: A última sessão do minicurso explora experiências etnográficas guiadas pela noção de performance e articula contribuições teóricas de Turner, Schechner e outros estudiosos do tema como Austin, Babcock, Bateson, Bauman e Tambiah com as proposições de Bakhtin sobre o riso rabelaisiano da praça pública medieval. As pesquisas que embasam a exposição tiveram como objetos espetáculos de rua realizados no centro do Rio de Janeiro na década de 1990 e comédias apresentadas por grupos de bumba meu boi na zona rural da Baixada Maranhense, entre 2000 e 2005. Em ambos os contextos pesquisados, salienta-se o desejo de provocar o riso nos espectadores-participantes por meio de ações ritualizadas e modos especiais de comunicação considerados adequados à situação de brincadeira, instaurada com base em códigos social e culturalmente definidos, e como tais reconhecidos pelos sujeitos comunicantes em cada contexto específico. Dessa maneira, o efeito da performance nos referidos eventos decorre, em grande medida, da competência dos atores-brincantes para estabelecer com seus interlocutores (não necessariamente plateias) uma relação de cumplicidade de modo que a compreensão não literal das mensagens comunicadas seja assegurada e seus sentidos sejam compartilhados. Tal competência envolve o domínio de repertórios de recursos de linguagem, além de códigos e fórmulas especiais, próprios de cada comunidade de interlocutores, os quais podem e devem ser empregados a fim suscitar uma situação ideal à instauração de um contexto interpretativo especial. Constitui-se, pois, a performance como uma espécie de (meta)comunicação que, embora sujeita ao insucesso, é culturalmente convencionada e eficaz. Logo, tem-se que um mecanismo básico da performance reside na reflexividade que permite experimentar o próprio self em um estado de “como se”: não como si próprio, mas como alguém que não é ou, ainda, alguém que poderia ser em “outro estado”, saindo de si mesmo, de modo que o “eu” possa ser percebido como um “não eu”. Não se trata de mero fingimento, mas de imaginação e ilusão consciente de uma ordem de realidade em que o “como se” pode ser experimentado como um “ser” de fato, ainda que momentaneamente. A situação performática, portanto, constitui um comportamento transitório caracterizado pela dupla negação que está na base das ações simbólicas e do riso. Em suma, pretende-se demonstrar como duas formas de expressão cômicas da cultura popular podem ser compreendidas com auxílio da noção de performance, à medida que ela enfatiza simultaneamente a comunicação e o comportamento dos interlocutores em especiais situações interpretativas, nas quais importa não só o que é comunicado, mas a maneira como o é.
Drama, ritual e performance em Victor Turner
Autoria: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Autoria: Drama, ritual e performance na obra de Victor Turner Como primeira das sessões do minicurso, esta sessão aborda a obra de Victor Turner com o foco nos conceitos de drama social, símbolo ritual e performance. O ponto de partida é a noção de ritual, que serve como fio condutor a indicar o caráter heterodoxo e precursor do autor cuja trajetória intelectual se iniciou no contexto da antropologia social inglesa em meados do século XX. 1) Drama social é o conceito formulado em sua tese de doutoramento, Schism and continuity in an African society (1996 [1957]) e traz à cena a atuação de Turner junto ao grupo liderado por Max Gluckman na Universidade de Manchester/Inglaterra e no Instituto Rhodes-Livingstone na então Rodésia do Norte. O conceito foi saudado na época como valiosa contribuição às teorias do conflito e da vinculação social: a vinculação se dava, disse Turner, não apesar dos conflitos mas por meio deles. Buscamos indicar também sua dimensão também simbólica e performática. 2) Símbolo ritual inscreve-se no expressivo conjunto de ensaios reunidos em Floresta de símbolos (Turner, 2005), produzidos entre 1957 e 1967, quando de seu deslocamento para universidades norte-americanas. Turner traz então não só o adensamento do formidável conceito de rito de passagem, de Arnold Van Gennep, como a elaboração do conceito de símbolo ritual em diálogo estreito com a psicanálise de Freud e Jung. A ênfase na dimensão vivida do ritual integra a corporalidade e a materialidade aos processos de apreensão de múltiplos sentidos e dos valores condensados nos símbolos. 3) Embora já desde cedo sugerido, o conceito de performance se individualiza na etapa final de sua carreira, tendo por base a cidade de Nova York e o encontro com o diretor teatral Richard Schechner. Turner ruma a uma antropologia da experiência que, deixada de certo modo em aberto pelo autor, tem inspirado inúmeros trabalhos e abordagens em que dialogam as áreas do teatro, das artes dramáticas e plásticas e da antropologia. Na base dessa obra cheia de desdobramentos está a densa pesquisa de campo realizada na África, em companhia de sua esposa, Edith Turner, entre os Lunda-Ndembu entre dezembro de 1950 e fevereiro de 1952, e entre maio de 1953 e junho de 1954. Nela fulgura o grande interesse dos Ndembus por seus rituais, chamados a dialogar nas demais etapas da carreira do autor com as mais diversas produções simbólicas das culturas ocidentais. Destacaremos também o diálogo do autor com a antropologia brasileira nos anos 1970/1980 e os múltiplos usos e inspirações contemporâneas trazidas por essa multifacetada obra.