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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT52: Memória e reconstrução de mundos: práticas etnográficas frente às situações limite

Felipe Magaldi, Carolina Castellitti

Desde a obra de autores como Michael Pollak, a relação entre as situações limite e as dinâmicas da memória, do esquecimento e do silêncio se tornou incontornável. Atualmente, as ciências sociais e a filosofia têm conferido crescente atenção às rupturas do cotidiano por meio de diversas nomenclaturas conceituais - eventos críticos, crises, catástrofes, traumas, desastres patrimoniais e ambientais - em que a memória aparece frequentemente ao lado das demandas por verdade, justiça e/ou reparação histórica. O colonialismo, o autoritarismo, as ditaduras militares, a violência de Estado e o neoliberalismo surgem frequentemente como cenários privilegiados dessas reflexões. Na presente conjuntura sanitária, a pandemia de covid-19 é narrada como um "trauma coletivo" que deixará um legado marcante para a humanidade, de sofrimento, luto, mas também de luta - duas dimensões inseparáveis. A partir de situações etnográficas diversas, este GT propõe um diálogo sobre as modalidades de construção de memória frente a trajetórias e mundos estilhaçados pela violência e pela exploração e precarização capitalistas. Trata-se aqui de compreender como se dá a redefinição das identidades sociais quando a ordem naturalizada do mundo habitual é quebrada - e a quebra incorporada no ordinário. Como matéria prima dessa reflexão, pode-se elencar distintas modalidades de enunciação dos acontecimentos, envolvendo testemunhos orais ou escritos, imagens, objetos, inscrições corporais e expressões artísticas.

Palavras chave: Situações Limite; Eventos Críticos; Memória
Resumos submetidos
A ausência do pai e a presença da mãe: o luto e a luta por jovens assassinados pelo Estado.
Autoria:
Autoria: O objetivo deste artigo é provocar uma reflexão acerca do lugar da maternidade e da paternidade a partir da ausência de filhos assassinados pelo Estado. Desse modo, o que busco pensar é: como o gênero designa o papel da mãe e do pai diante o luto e a luta por justiça. Em meu trabalho de campo, feito durante a dissertação de mestrado, com a Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado na Baixada Fluminense, analiso que a morte de um filho não implica em uma abdicação da maternidade, além disso, ao entrarem para o coletivo ainda existe uma "adoção" dos filhos de outras mães que também foram assassinados. A Rede é formada apenas por mulheres, incluindo majoritariamente mães, mas também irmãs e tias. Desse modo, essa pesquisa parte do feminino e da categoria "mães de vítimas de violência" para pensar o lugar do masculino e da paternidade nesses grupos. Este trabalho conta com análises feitas durante a minha pesquisa de mestrado e com o referencial teórico que parte do tema da parentalidade na antropologia. Busco refletir o seguinte: se a maternidade é aditiva, mesmo que após a morte, visto que as mães tendem a adotar os "filhos da Rede", seria a paternidade subtrativa, já que vejo pouquíssimos pais na luta?
(Po)éticas das águas
Autoria:
Autoria: pensando no(s) contexto(s) de crise(s) do Mundo como o conhecemos, parto da Oceanografia enquanto um campo de práticas fundamentadas e circunscritas a uma performatividade da (suposta) neutralidade do conhecimento científico que, fixada aos pilares onto-epistemológicos da Modernidade - fortalecidos por estruturas e aparatos bélico-militares nos contextos de guerras - e a uma ética cisheterogenerificada, (re)produz e faz (re)produzir discursos e condutas que autorizam, perpetuam, e fortalecem estruturas colonizadas e colonizadoras do Mundo Ordenado no campo das águas - especialmente (mas não só) no âmbito acadêmico-profissional -, imanentemente silenciando outras (possíveis) narrativas. a partir da quebra (tanto em termos onto-epistemológicos quanto lingüísticos e/ou metafóricos) como espaço e rota de fuga dos mecanismos de captura, busco, com base na composição de um (sempre fluido) arquivo oceânico, mergulhar ativamente rumo às memórias aqüáticas que operam, na superfície, como fácies do evento moderno-colonial fundamentado na repetição das configurações fractais da violência capital racial, mas que, aqueles em profundezas, subsistem como formas tentaculares (cthulhucênicas) de memórias naufragadas que, submergidas (como violência, ou como fuga), propagam-se (como trauma) na con/seqüência das ondas (de esteira) da escravização, inscrita historicamente entre os séculos XVI ao XIX. trabalhando a partir de um exercício (po)ético junto à metodologia da iluminação por luz negra (que permite aos objetos-sujeitos que brilhem por si próprios), busco (re)pensar prosas (sempre-já existentes) entre as Ciências do Mar e as Sociais e Humanas, especulando e investigando - na mesma medida em que busco aberturas (rasgáveis) da/na matriz de dominação - a respeito de outra(s) possibilidade(s), em relação profundamente implicada nos/com os ambientes aqüáticos, costeiros, oceânicos, (re)direcionando o fluxo das águas para outros caminhos (possíveis e possantes) para além dos sistemas de exploração, explotação, expropriação, e des-envolvimento em hipnose da linearidade moderno-colonial.
O pertencimento à terra e a questão indígena na ditadura militar
Autoria:
Autoria: O presente artigo tem por objetivo expor e contextualizar as graves violações de direitos humanos praticadas contra indígenas no período da ditadura militar (1964-1985), levando em consideração o caráter sistemático da utilização da tortura no período. O artigo será dividido primeiramente com a contextualização e as motivações da instauração de um regime militar, em seguida as graves violações de direitos humanos perpetradas contra indígenas e finalizado explicitando a relação entre indígenas e a terra, considerando que a questão indígena é antes de tudo uma questão agrária e a forma com que o retiro forçado de suas terras, transformando indígenas em empecilhos para o desenvolvimento do país no contexto do milagre econômico.
"Já podaram seus momentos, desviaram seus destinos": a pandemia de Covid 19 como evento crítico entre estudantes formandos de Cursos Técnicos de Nível Médio
Autoria:
Autoria: Este trabalho se propõe, a partir da pandemia de Covid-19 vivenciada desde março de 2020, a refletir a situação vivenciada por estudantes formandos de Cursos Técnicos de Nível Médio. Estes estudantes tinham em comum uma série de expectativas em relação ao seu último ano no Ensino Médio - expectativas estas frustradas pelo isolamento social forçado, que de forma abrupta e inegociável, substituiu as experiências inerentes ao término de sua formação básica pela desgastante novidade do ensino remoto. São tomados como material empírico, os registros pessoais que os estudantes foram convidados a desenvolver sobre o conjunto de suas experiências com a pandemia, ao final do ano de 2020 - principalmente sobre as principais dificuldades enfrentadas para concluir o Ensino Médio durante uma pandemia e desenvolvendo estudos sem contato direto com professores ou colegas. Para o trabalho com os relatos recolhidos, serão alocadas as categorias de evento crítico / situação-limite, experiência, história e memória. Dentre os múltiplos enquadramentos possíveis para tais relatos, é possível acessar a angústia provocada pela ameaça à própria vida e à de entes queridos de estudantes que foram obrigados a uma existência privada do cotidiano seguro de antigas rotinas, imersos em um turbilhão de tarefas, provas e atividades advindas do ensino remoto. Esta escrita pode ser tomada como tradução da violência física e simbólica imposta pelo evento crítico.
Crise, memórias e materialidades no museu das remoções
Autoria:
Autoria: Este trabalho analisa de modo correlacional processos de crise, construção de memórias e materialidades tendo por objeto o Museu das Remoções, projeto de museologia social criado na comunidade Vila Autódromo, no município do Rio de Janeiro, em meio aos processos de remoção e reurbanização sofridos pela comunidade ao logo das preparações para os megaeventos esportivos transcorridos no Brasil (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). Por meio do exemplo fornecido pelo Museu das Remoções, mobilizo uma reflexão antropológica para analisar formas e meios de produzir memórias e gerar sentidos para a vida após um evento crítico, com destaque às formas de intervenção no espaço físico e na disputa política e simbólica sobre os sentidos da memória da violência, acentuando as disputas pela memória como formas de acessar e garantir direitos sociais, tais como o direito à moradia digna. Ademais, por meio da noção de memória como uma disputa política trabalhada ao longo do artigo, viso fornecer exemplos de mecanismos e processos para lidarmos, coletivamente, com as memórias das muitas crises que nos atravessam hodiernamente, sejam elas sanitária, política, econômica, dentre outras.
Tecendo redes, (re)criando mundos: a ação cotidiana das mulheres nas periferias da cidade de São Paulo.
Autoria:
Autoria: Esta apresentação tem por fim trazer algumas reflexões de minha pesquisa de doutorado, em fase de conclusão, relacionadas à tarefa cotidiana de mulheres moradoras das periferias da cidade de São Paulo, de (re)construir mundos devastados após casos de violências, sobretudo assassinatos e prisões, envolvendo pessoas de suas famílias, normalmente homens. Tive como objetivo observar os efeitos produzidos pela "guerras de homens" que se infiltram no cotidiano das famílias que neles moram. A partir de um longo trabalho de campo junto às lutas e à vida doméstica dessas famílias, argumento que dos conflitos, tensões e negociações protagonidos por homens do crime e por agentes do Estado decorrem impactos generificados. Enquanto são os homens que sofrem diretamente com agressões, assassinatos e prisões, às mulheres recaem a dor da perda, as sobrecargas financeiras e do cuidado e a tarefa cotidiana de reconstruir mundos devastados. Aproximei-me de famílias constituídas por mulheres onde o cuidado é prática e gramática de produção de relações, sobretudo entre mulheres. Mães, fihas, avós, irmãs, tias tecem redes de solidariedade com parentes, vizinhança, amigas e ativistas buscando mitigar os efeitos da precariedade econômica e da violência que recaem sobre suas famílias. Contudo, argumento que essas ações não figuram apenas como reação frente às opressões, mas são produzidas a partir de um processo criativo sustentado na experiência de mulheres moradoras desses territórios que articula gênero, raça e classe social. Acompanhando o cotidiano dessas mulheres e ouvindo suas histórias de vida, percebi que o cuidado é central e assume contornos específicos em suas experiências. Focando nas relações familiares, a díade mãe e filha se destacou. Em contextos em que as mulheres se veem sobrecarregadas com a tarefa do cuidado e com a manutenção da família, o peso do trabalho cotidiano é partilhado por mães, avós e filhas. O lugar de cuidadora é vivido desde muito cedo por meninas produzindo ressentimentos e adoecimentos que se imiscuem na própria produção de si. Porém, os casos que acompanhei revelam também como o cuidado, como experiência generificada, é elemento a partir do qual agenciamentos, lutas e curas são (re)produzidas. Aprendizados cotidianos, histórias de vida e memórias são partilhadas entre gerações servindo de alimento para produção de certa feminilidade. Assim, a experiência do cuidado é vivida tanto como uma forma de opressão, mas também como uma possibilidade de produção de si, de relações, de lutas, enfim, do próprio território. Neste sentido, argumento que não apenas as "guerras de homens" produzem as margens, mas também uma ação contínua e silenciosa a partir do cuidado faz das mulheres também produtoras desses territórios e de seus mundos.
A morte e o luto como via de acesso do evento ao ordinário: uma etnografia de vivências pandêmicas
Autoria:
Autoria: A transmissão do vírus COVID-19 foi classificada em janeiro de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), sendo que gradativamente a COVID-19 tomou contornos globais. No Brasil, os impactos da pandemia foram vários, um dos mais significativos diz respeito às vidas que foram perdidas. Desde o início da pandemia no Brasil até meados de abril de 2022, foram mais de 660 mil vidas perdidas tendo como causa confirmada a COVID-19. Outro impacto compreende o luto engendrado por essas mortes. Se estimarmos o quantitativo de pessoas que foram enlutadas, temos um cenário de "trauma coletivo" incrustrado na memória social, utilizando a abordagem teórica de Pollak (1992). A proposta desse artigo é abordar narrativas de duas mulheres nortistas, mães e chefes de família, em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que tiveram as suas vivências de luto iniciadas durante a pandemia. Contudo, somente uma delas tem o seu luto decorrente da COVID-19. Essa diferença torna os dois processos de luto qualitativamente diferentes quando relacionados à pandemia. Porém, em ambos os casos a memória aparece como uma via pela qual o evento, entendido aqui como acontecimento extraordinário nos moldes do que postula Veena Das (2020), desce ao ordinário. É por meio do exercício da memória, sem prejuízo de outros meios, que o evento opera modificações no cotidiano dessas mulheres. Foram realizadas entrevistas quinzenais e, posteriormente, mensais à distância com o uso do aplicativo WhatsApp pelo período de um ano, entre 2021 e 2022. As interlocutoras fazem parte da pesquisa "Efeitos das políticas de isolamento e distanciamento social relacionadas à Covid-19 na vida de famílias vulneráveis no Brasil". Assim, o objetivo do artigo é verificar por meio das narrativas das mulheres entrevistadas quais as implicações da pandemia no processo de elaboração da perda e sofrimento decorrentes do luto. Uma das seções refletirá sobre o exercício etnográfico digital, largamente utilizado durante a pandemia, que apresenta limitações e possibilidades (Lins, Parreiras e Freitas, 2020). Por um lado, tornou viável o acesso quase imediato às interlocutoras via redes sociais, mas, por outro, houve dificuldades de realização das entrevistas no cotidiano modificado, tendo em vista o desemprego, o cuidado dos filhos e idosos. Referências: DAS, Veena. Vidas e Palavras. A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Unifesp, 2020. LINS, B. A.; PARREIRAS, C e FREITAS, E. T.. Estratégias para pensar o digital. Cadernos de Campo (São Paulo, online), vol. 29, n.2, USP 2020 POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
Colhendo os cacos dos corações no olho do furacão: mães enlutadas sobrevivendo a pandemia e vivendo o black lives matter
Autoria:
Autoria: O Rio Grande do Norte nos últimos anos esteve entre os estados brasileiros com a maior taxa de homicídios contra jovens, sendo as pessoas assassinadas majoritariamente homens, negros e pobres. Partindo desse problema social e considerando que são as mulheres as principais responsáveis pelos cuidados desses sujeitos, buscando cotidianamente formas de salvaguardá-los do risco de morte, na minha pesquisa de mestrado procurei compreender quais as percepções de segurança pública e as estratégias de manutenção da vida de jovens negros que "mães" que já tinham perdido um "filho" adotam para que outros tutelados com o mesmo perfil não morram. Para realizar a dissertação, foi feita uma etnografia da relação de maternagem de seis mulheres que moram em uma região da cidade de Parnamirim-RN com problemas de violência urbana desde o final da década de 90. Um dos movimentos que fiz para atingir esse objetivo foi compreender como as mães lidam com tal configuração social, recebendo especial destaque as recentes transformações do mundo devido à pandemia de coronavírus e à luta internacional pela vida das pessoas negras. Neste trabalho me proponho a aprofundar as reflexões sobre como essas mulheres estavam reconstruindo o mundo delas e de suas famílias em meio ao luto da perca de um filho e os dois eventos de grande impacto internacional acima citados.
As vastas ruínas da memória: pessoa, self e interioridade frente ao Alzheimer
Autoria:
Autoria: Verdade, vontade e interioridade. Eis os três elementos fundamentais da categoria de pessoa moderna e que conjuntamente sustentam a imagem do self como a temos desenhado no último século. Mas o que acontece quando uma destas dimensões parece se romper? Como as duas outras se articulam? Qual a possibilidade de sustentação de um self diante deste processo de esfacelamento? A presente proposta busca se aprofundar nestas estas questões a partir de materiais etnográficos construídos através da experiência da família do próprio autor frente ao processo de esquecimento que a avó da família sofre em decorrência do Alzheimer. Dona Cida possui o diagnóstico há aproximadamente 4 anos e durante este período, suas memórias foram se perdendo e com elas também houveram alterações no seu comportamento e personalidade. Com isso, frequentemente emergem dúvidas sobre a essência e a verdade que habita aquele corpo. Será que Dona Cida perdeu quem era? Ou talvez o afrouxamento de suas memórias e normas sociais que foram calcadas em seu psiquismo durante toda sua vida agora possibilita a ela se mostrar como realmente era? A doença destrói a verdade antiga ou ergue sobre si uma nova verdade? A presente proposta parte do pressuposto de que um self só pode emergir quando em processo relacional com o Outro. Portanto, é cabal para a presente proposta investigar as possibilidades relacionais e comunicativas de Dona Cida durante o seu processo de perda de memórias e, consequentemente, de abalo de um dos tripés do que julgamos como epistemologicamente fundamental para a constituição do self no contexto das ciências do espírito (Geisteswissenschaften) na primeira metade do século XX. Munindo-se dos desenvolvimentos mais recentes da teoria antropológica, em particular das contribuições de Michelle Rosaldo e Gananath Obeyesekere, a presente fala busca tensionar o material etnográfico de modo apresentar possibilidades outras de constituição do self e da noção de pessoa sob o estatuto do Alzheimer. Entre os cuidados levados a cabo pela família que envolvem não somente Dona Cida, mas a memória coletiva da família sobre ela, o presente trabalho busca analisar as estratégias de manutenção de memórias comuns e tenciona-las com permanentes rearranjos que constroem o entendimento de Dona Cida como pessoa dotada de interioridade, verdade e vontade.
Antes Era A Veroca: Memórias Sobre Um Processo De Transformação Da Paisagem
Autoria:
Autoria: Onde antes era situada uma das praias de mais fácil acesso à população da cidade de Santarém, a Praia da Vera Paz, popularmente chamada de "Veroca", lugar de lazer, pesca e campeonatos de futebol, agora é conhecido como "Bosque da Vera Paz". O local foi alvo de grande disputa territorial quando este patrimônio de inestimável valor sociocultural se viu impactado pela instalação do Terminal Fluvial de Granéis Sólidos, da multinacional Cargill. Hoje o que vemos no local é um complexo de estruturas portuárias e de armazenamento situados à margem do Rio Tapajós. Nesse processo, famílias ribeirinhas foram retiradas de suas moradas à beira do rio, onde plantavam e pescavam seus alimentos e empurradas para a periferia, enquanto a paisagem que temos hoje do lugar se construía. Nos anos 90, na praia, se via banhistas, areia branca, muitas árvores frutíferas e barracas de venda das mais diversas. Aos fins de semanas, era palco de campeonatos das famosas peladas de futebol. Ao longo dos anos, a areia mudou de cor, Santarém passou por um processo de crescimento, a área em torno da praia foi aterrada para dar lugar à construção de bairros, ruas e casas, o campo sumiu. Devido às nuvens de fuligem de soja e do milho, já não se enxerga ou respira como antes. Nesse período, de cerca de duas décadas, os fluxos e as linhas de vida que ali habitam foram reorganizadas e constituíram novas tramas e relações. Neste trabalho, busco seguir as reflexões e fazer uso das ferramentas conceituais, principalmente acerca da ideia de paisagem, de Tsing (2019) no que tange ao entendimento que as paisagens constroem suas histórias por meio de perturbações. Na sua perspectiva, seguir essas histórias de perturbação seria uma maneira de fazer da paisagem um protagonista dinâmico da vida social e uma prática de coordenações multiespécies. Dessa maneira, pretendo trazer o conceito de "paisagem em perturbação" para esse diálogo e refletir sobre as transformações ocorridas nas últimas décadas no Bosque da Vera Paz a partir dele. Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo principal reconstituir parte desse processo, e dos impactos trazidos pela instalação da Cargill, por meio das memórias e dos relatos de vida dos moradores do bairro do Laguinho. Partindo desses relatos, busco perceber como tais acontecimentos impactaram não somente as populações humanas do bairro, mas também as demais formas de vida que ali habitam e suas múltiplas relações.
De lama, vida e fragmentos: compondo o Museu Virtual Mariana Território Atingido
Autoria:
Autoria: O rompimento da barragem de Fundão (Samarco/Vale e BHP Billiton) colocou as comunidades rurais de Mariana em evidência, as quais passaram a ocupar um lugar na mídia, academia e sociedade de forma mais ampla justamente pela sua devastação. Durante os últimos cinco anos, a Assessoria Técnica Independente (Cáritas Regional Minas Gerais) desenvolveu, em diálogo com os atingidos e atingidas do município, metodologias em diversas linguagens com o objetivo de levantar da forma mais completa as perdas e danos que essas famílias vivenciam. As informações primárias produzidas, portanto, estão inscritas em pesquisa prática cujo propósito central foi o registro detalhado para fins de instrumental ao pleito indenizatório e de restituição do direito à moradia adequada. Há que se considerar que esses sujeitos foram profundamente atravessados pelo desastre-crime de grandes proporções, o que torna os relatos, desenhos e percepções rememorados a partir desse evento crítico. O museu virtual recria os territórios atingidos no município de Mariana, representando plantios, criações, moradias, caminhos e referências comunitárias georreferenciadas. É na sobreposição dessas informações com imagens, textos, vídeos e outras poéticas elaborados e produzidos a partir do experienciado cotidianamente junto aos sujeitos centrais de nossa atuação que compusemos este site. Assim, a plataforma integra prática de pesquisa, fundamental para um contorno sistemático dos dados, e ação política, necessária para dar espaço de voz e escuta das narrativas subalternas. Os dados aportam a devastação produzida pela mineração no território e denunciam o descaso com as comunidades que ainda anseiam pela reparação integral e lutas por justiça. Contudo, representá-las nesse território virtual não é repetir as violências impostas a essas pessoas, mas fazer perdurar os modos de fazer, as práticas, as celebrações e as memórias dos atingidos e atingidas sem, contudo, determiná-las pelo desastre-crime. Impedidos de viver nas comunidades de origem, essas famílias insistem em defender a posse da terra, expressando sempre o pertencimento ao local e a não disposição em deixá-lo para ocupações alheias à sua vontade. Como forma de disponibilizar essas informações e constituir um instrumental para as disputas de narrativas, o Museu Virtual Mariana Território Atingido elabora os sentidos de comunidade, tecendo os fragmentos obtidos a partir do esforço em escutar o indizível e registrar todo o irrestituível.
Nito Alves, o herói inimigo de Angola: reflexões sobre fontes, arquivos e versões históricas
Autoria:
Autoria: Com a independência de Angola, em 1975, pelo partido MPLA, estabeleceu-se o novo governo e Nito Alves foi nomeado Ministro da Administração Interna. Seu destaque deveu-se, em parte, ao prestígio da luta anticolonial, onde foi um dos líderes da guerrilha numa região bastante complexa do conflito, o que fez com que muitos combatentes despontassem como heróis. Durante esse período, vários dos líderes do MPLA estavam no exílio, afastados da luta e da população. No pós-independência, o novo governo se constituía à luz de antigas controvérsias, evidenciando disputas internas pelo projeto de nação. De um lado, Nito e uma rede de aliados, do outro, uma ala representada por membros da antiga elite nativa. Nito foi acusado de fraccionismo, expulso do partido e responsabilizado por uma tentativa de golpe de estado em 27 de Maio de 1977. Seguiu-se um período de repressão e expurgos amparados pelo Estado. A disputa entre as duas correntes opostas no interior do MPLA teve como efeito a consagração de certos dirigentes como representantes legítimos do partido, apoiados sobretudo na figura do presidente Agostinho Neto. Essa definição contribuiu com a consolidação do MPLA como governo oficial de Angola no cenário local e internacional, com impactos, inclusive, na guerra civil. As diferentes versões do 27 de Maio levantam questões sobre suas formas de produção, na medida em que essas narrativas são construídas a partir das posições que seus narradores assumem. Não proponho aqui a busca pela versão real dos fatos, como se isso fosse possível, mas observar como se forjaram narrativas históricas contrapostas cuja versão vencedora legitimou a história da nação angolana. É nela que, ao longo de sua trajetória, Nito ocupa posições de prestígio, de acusador, de acusado e de inimigo. Etnografar essa virada tornou-se meu tema de pesquisa e para responder às minhas questões, propus-me buscar nos discursos documentais - oficial e de Nito - a articulação das categorias usadas para acusar o outro. Trago para essa comunicação algumas de minhas inquietações neste processo, pois a desproporção de disponibilidade e acesso às fontes que tratam da versão nitista do 27 de Maio nos contam também sobre as formas de produção da história e da memória, em direção à legitimação do saber (e do poder). Esses meandros apontam que há muito a ser apreendido para além do documentado. Há uma relação constituída entre as versões, que, no limite, também as constituíram. Não raro podemos observar as formas como as narrativas que privilegiam a história dos vencedores se materializam em livros didáticos, museus e patrimônios. Pretendo refletir sobre a desigualdade da possibilidade de expressão dos envolvidos que nos coloca o desafio de entender e explicitar o modo de produção de tais documentos.