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ISBN: 978-65-87289-23-6
MR35: Materialidades etnográficas: fabular com as coisas

Coordenação: Mylene Mizrahi (PUC-Rio)

Debatedor/a: Paulo Maia (UFMG)
Participantes: Vânia Z Cardoso (UFSC), Luciana Hartmann (UnB), Viviane Vedana (UFSC), Mylene Mizrahi (PUC-Rio) 

Resumo:
Parafraseando a famosa expressão de Ingold (2012), há algum tempo a antropologia vem “trazendo as coisas de volta à vida”, entrelaçando noções acerca de materialidades e matérias, agência e vida, sujeitos, coisas e objetos, no projeto de repensar o lugar que as coisas ocupam na análise social. Uma questão que tem ocupado um lugar menor emerge em uma outra tensa confluência, aquela das propostas de autores como Gell (1998), de formular abordagens não “linguágicas” para os objetos, ou de Miller (1987), que nos remete ao “modo silencioso” com que a forma material nos ordena, ou de Ingold (2007) de que as propriedades dos materiais são histórias da experiência de sua ocorrência. Isso sugere que o “trazer as coisas de volta à vida” implica uma atenção à escuta, aos ritmos do ouvir e ao ouvir dos ritmos (Tsing e Ebron, 2015) no trabalho de campo e na escrita etnográfica. McLean (2017: xi) propõe que a antropologia seja uma “arte fabulatória”, capaz de atuar nos “interstícios entre mundos humanos” - o lugar clássico do encontro etnográfico - e nas “fronteiras do humano” - em suas múltiplas acepções de dissolução e criação. É este exercício fabulatório sobre as vidas e as coisas, sobre palavras e gestos, sobre escutas e ritmos, sobre coisas e os gestos de narrar que se pretende ensaiar nesta mesa.

Palavras chave: materialidades; fabulação; etnografia
Resumos submetidos
Fabulações sobre o movimento: entre esqueletos, próteses e bengalas
Autoria: Luciana Hartmann
Autoria: Nesta comunicação dou sequência a experimentos que venho realizando há alguns anos, em diferentes formatos (ensaios autoetnográficos, vídeos, performances, narração de histórias), nos quais procuro estabelecer uma conversa com o esqueleto imperfeito de uma mulher, que impede ou prejudica sua mobilidade. Dessa conversa emergem reflexões sobre o conceito de movimento e seus múltiplos significados, e sobre como estes reverberam tanto em minha trajetória de pesquisa etnográfica com contadores de histórias e crianças imigrantes, quanto em minha trajetória pessoal, marcada por cirurgias ortopédicas. Nas fabulações sobre o movimento, desta forma, cabem combinações entre contos tradicionais, histórias de vida, registros etnográficos, teorias antropológicas e reflexões da filosofia clássica, que pensam o movimento como mudança na realidade - Aristóteles, por exemplo, define o movimento como passagem da potência a ato. Mobilidade, movimento, atravessar fronteiras... Etimologicamente, a palavra movimento origina-se do Latim movere, que significa "colocar em marcha, mover, fazer deslocar-se". Movere também está na raiz da palavra emoção, uma junção de ex + movére: "mover para fora". Ou seja, mesmo na imobilidade, podemos nos mover, podemos nos emocionar. André Lepecki, em texto escrito durante o período pandêmico, defende que há "Movimento na Pausa" (Lepecki, 2020). Há muitas possibilidades de movimento. Fotos e vídeos etnográficos selecionam/registram/exibem movimentos. Textos ensaísticos, disse Benjamin, apresentam o movimento das ideias. Próteses e bengalas auxiliam o movimento do corpo. Fabulações criam imagens, textos, corpos, imaginam movimentos.
Entre gestos e palavras: (des)fazendo coisas e estórias
Autoria: Vânia Z Cardoso
Autoria: McLean sugere que um dos potenciais mais radicais da antropologia é o de minar as convenções que distinguem o ficcional do documental, ressaltando que isso não implica em um abdicar do real ou um ausentar-se desse em auto-absorção, sendo antes um mergulhar na viscosidade, confusão e proliferação do que é (2017). Para McLean, a ênfase em tal "arte fabulatória" (ibid) passa por um desvio de afinidades da antropologia em direção às artes e à literatura, mas, levando a sério o que Tsing e Ebron (2015) descrevem como os "ritmos característicos do trabalho de campo" - a escuta atenta aos ritmos de outras vidas, pontuada pela surpresa da antropóloga em campo - sugiro que a arte da fabulação reflete menos uma escolha entre arte e ciência do que uma atenção aos afetos e à composição de sensibilidades implicados no campo etnográfico. Retomando recentes e antigos encontros com clientes, filhos de santo e entidades da rua em várias sessões de consulta, onde antropóloga-cambona, entidades e clientes se (des)encontram em um intenso ritmo de movimento, sonoridades e olhares, me volto para o jogo de gestos, palavras, coisas, afetos, estórias, búzios e silêncios que se desdobram no fazer da consulta enquanto encontro que não se limita espacial ou temporalmente à sessão. Busco assim mergulhar nesses atos fabulatórios e em sua tensa composição daquilo que é e do que pode (não) vir a ser.
A voz, a fala e outras partes da pessoa: a matéria do artista funk
Autoria: Mylene Mizrahi
Autoria: Tendo como mote episódios de criminalização do funk carioca dos quais participei argumentando a favor do ritmo em audiências públicas, eventos acadêmicos, entrevistas aos meios de comunicação, elaborarei sobre a apropriação de minha fala e voz - emitidas em entrevista ao Fantástico, programa da Rede Globo - por um grupo de artistas na composição da base da música "Funk não é crime". Argumentarei que as especificidades da lógica apropriativa funk, que evidenciarei junto à categoria nativa "rouba-rouba", encontra-se a serviço do que designo como sendo o hiper-realismo funk. Esse traço hiper-realista se faz concomitantemente a uma busca de visibilidade que, excessiva para alguns, pode permitir entender por que o funk "incomoda" tanto e é criminalizado. Ao mesmo tempo, esse tornar-se visível, que se faz acompanhar de uma estética do choque, se alimenta e é produto de partes destacadas de pessoas. Nesse caso, partes apropriadas de mim mesma e outras destacadas do artista que, como pessoa fractal, se distribui e age pelo mundo, levando longe sua mensagem. Esse distribuir-se se faz igualmente manifesto por meio da imagem, espalhando-se pelas redes e pelo meio digital. Imagem que novamente traz à cena a "realidade" do artista funk, o que me leva, por fim, a pensar sobre como relacionar a performance funk e o Afrofutursimo. Se neste último a ancestralidade é acionada para produzir narrativas de um futuro transgressor e utópico, que se realiza na ficção, o artista funk ficciona sobre o real para explicitar o presente como se desenrola à sua frente. Ao elaborar sobre o hiper-realismo funk elaboro sobre os modos apropriativos do artista pop, que são também modos políticos de agir sobre a materialidade no mundo.
Peixe bom, peixe fraco: movimentos e ritmos do mercado de pescado
Autoria: Viviane Vedana
Autoria: Nesta apresentação pretendo elaborar algumas reflexões sobre as transformações pelas quais passa o peixe no desenrolar de sua cadeia produtiva, enfatizando gestos e práticas que fazem o pescado após a captura. O que estou compreendendo aqui como "fazer o peixe" ou "fazer o pescado" se refere ao conjunto de práticas, ações e ritmos que se relacionam com essa matéria e a fazem acontecer como peixe, pescado. Me remeto ao movimento de corpos, objetos, mercadorias, mas também o movimento dos tempos, trajetórias e trocas que permitem o encontro de peixes de diferentes lugares, com empresas atacadistas, donos de restaurantes, mercados locais, varejistas, clientes, consumidores e compradores. Estes encontros transformam os peixes em pescado, mercadoria e alimento. Os fios que irei seguir para narrar estes encontros e práticas partem do trabalho de campo na CEAGESP, em São Paulo, um dos maiores entrepostos comerciais da América Latina, mais precisamente no setor de pescados, que é responsável pela comercialização de toneladas de peixes diariamente. Fala-se, na CEAGESP, de peixe bom e peixe fraco, categorias que se relacionam com índices dos deslocamentos dos peixes das águas até o mercado expressos nas qualidades sensíveis que apresentam: firmeza, cor e brilho da carne, do couro, das escamas, dos olhos, seus aromas. Estes deslocamentos tem temporalidades particulares a depender do tipo de pesca e de peixe. Peixe bom ou peixe fraco se fazem em mediações e em movimento. Caminhões frigoríficos, caixas e gelo, diferentes tipos de instrumentos, forças e gestos, mediam estas transformações dos peixes. Antes de tudo isso, ainda os barcos, iscas, pescadores participam desta transformação. Como um espaço aparentemente parado, feito de concreto, pode ganhar intensa animação ao ser preenchido por quantidades enormes de peixes, acondicionados em caixas com gelo, e por um conjunto variado de práticas que fazem emergir ali um mercado? Aqui me encontro com as ideias de Ingold sobre movimento e animação como propriedades do vivo e da vida. Ainda que parte do pescado esteja biologicamente morto, o mercado ganha vida na força dos gestos que transportam, transferem, empurram, puxam, movimentam caixas e mais caixas de peixes. Também nos gestos que batem, cortam, separam, ordenam o pescado. No gelo constantemente derretendo e transformando as possibilidades de transitar por ali, ao encharcar o chão. Nas sonoridades das vozes e dos gestos que indicam o próximo movimento ou mesmo a interrupção dele. Caixas, peixes e gelo, ao mesmo tempo, não estão inertes, mas provocam gestos e movimentos. Se as qualidades sensíveis dos peixes - de sua matéria - nos apontam para índices táteis e olfativos, as sonoridades do mercado nos remetem aos ritmos do movimento das coisas que o animam.