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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT19: Antropologia e pesquisas no continente africano: diálogos críticos contemporâneos

Gilson Rodrigues Jr, Sara Morais

A proposta deste GT é estimular debates advindos de pesquisas antropológicas em e sobre contextos etnográficos no continente africano. Os estudos realizados nas últimas décadas por pesquisadores brasileiro/as têm se caracterizado por uma variedade enorme de temas, propostas analíticas e perspectivas teórico-metodológicas e epistemológicas inovadoras. O diálogo da antropologia com a história (colonial e pós-colonial) tem se mostrado particularmente profícuo para a compreensão das complexas transformações políticas pelas quais passam as sociedades africanas contemporâneas, o que inclui as dimensões de gênero e étnico-raciais. As interfaces com outros campos disciplinares têm tornado a antropologia feita em interlocução com sujeitos africanos uma via privilegiada de apreensão das dinâmicas do/no continente. Nosso objetivo é reunir um conjunto de trabalhos preocupados em entender etnograficamente dinâmicas diversas em contextos africanos específicos e promover um debate qualificado sobre questões atuais que se impõem nesse universo de pesquisa. São bem-vindos estudos que abordem os seguintes temas: relações raciais em contextos coloniais e pós-coloniais; patrimônio cultural; festivais culturais; fluxos de pessoas e de objetos; práticas comerciais; gênero e sexualidade; sociedade civil; formação do Estado e da nação; práticas de cooperação internacional; cultura popular africana; dinâmicas familiares e de parentesco; epidemias e pandemias; conflitos armados; juventude.

Palavras chave: Pesquisas; contexto africano; diálogos críticos
Resumos submetidos
Dança tufo e os ritos de iniciação: espirais sobre dançar e criar mulheres
Autoria: Jaqueline de Oliveira e Silva
Autoria: Neste texto, meu olhar se concentra sobre as danças realizadas nos ritos de iniciação femininos da puberdade na região norte de Moçambique, chamados em idioma makua de emwali, e nas associações comunitárias femininas. Nas associações, a dança tufo foi a principal performance investigada. Nestes locais dançar é o ato. O que se faz. As mulheres dançam nos ritos de iniciação para os mais diversos fins: brincar, educar, juntar dinheiro, fazer uma roupa nova e se divertir. Ser dançada é receber, ação supostamente passiva. Aprende-se como agir com as mais velhas, como cuidar do futuro marido, como e para onde direcionar o olhar. As participantes observam e escutam atentamente com todo o corpo, colocam-se em modo de atenção para garantir uma integração esperada com os musiqueiros, os tambores, movimentos do corpo e articulações vocais expressas pelos gritos de "ululu". Entre as mulheres makuas, o corpo se desenvolve a partir de redes de coletividade que sustentam modos de forjar outras perspectivas de corpo. Leio os ritos de iniciação e a dança tufo como performances do tempo espiralar no sentido que nos apresenta Leda Maria Martins, no qual movimentos, ações, sons e palavras se conectam em simultaneidade, num tempo que se move em diversas direções, do passado para presente, e do presente para o futuro.
Autoritarismos de Estado, juventudes desesperançadas: conexões PUNK
Autoria: Luana Piveta de Moura Luz
Autoria: Brasil e África do Sul costumam ser colocados em posições opostas quanto à questão racial: "democracia racial" e "apartheid", são eixos que dificultam a identificação de conexões (Moutinho, 2004). Nesta pesquisa, que faz parte de um projeto maior: "Bacharéis, empregados e clérigos: um estudo sobre a dinâmica das interações sociais numa cidade sul-africana", coordenado por Laura Moutinho, busco refletir nas brechas dessa perspectiva e mapear conexões. Para isso, investigo a trajetória de André Fredrick Pretorius, africânder, que mudou-se para Brasília com o pai embaixador em 1978, aos 17 anos. A identidade africânder articula raça com nacionalismo, militarismo e religião. Os africânderes criaram a base ideológica do que viria a ser o regime autoritário de base racial que esteve no poder na África do Sul entre 1948 e 1994: o apartheid. Quando chegou ao Brasil, André Pretorius era punk e, ao se encontrar com os poucos punks que havia em Brasília, iniciou o "Aborto Elétrico", uma das primeiras bandas brasileiras do estilo, no contexto da ditadura militar (1964 e 1985), junto a Renato Russo e Fê Lemos. Isso aconteceu no contexto de surgimento do movimento punk na Inglaterra. O trânsito internacional a que tinham acesso favoreceu este encontro, já que o grupo conhecido como Turma da Colina recebia informações, discos e fitas punks que eram enviadas pelos amigos que estavam no exterior, o que era muito comum; e importava instrumentos musicais diretamente através das cotas de importações dos consulados, onde trabalhavam os pais de alguns deles, como o pai de Pretorius trabalhava na Embaixada da África do Sul, onde o Aborto Elétrico fez seus primeiros ensaios. Em 1980, André foi forçado a retornar para a África do Sul para, como todo jovem africânder, servir o exército do apartheid, regime autoritário de base racial que esteve no poder entre 1948 e 1994. A bibliografia aponta o quanto o militarismo está enraizado na sociedade sul-africana, principalmente entre os africânderes, organizando as relações e o cotidiano. O serviço militar era obrigatório para todo jovem africânder, impactando sobre a construção das masculinidades, como mostra Nyameka Mankayi (2010), definindo o ser soldado como uma personificação das práticas sexuais masculinas tradicionais, apesar de também proporcionar um ambiente homossexual e masculinidades não-hegemônicas. Dessa forma, Pretorius possibilitou o contato destes jovens brasileiros com a ditadura sul-africana, de modo que seu retorno ao país foi muito impactante não só para ele, mas também para seus amigos da Turma da Colina, que conheceram o apartheid a partir da experiência de um jovem africânder que teve que servir a uma causa na qual não acreditava.
Santuários e saúde. Peregrinações da Espanha ao Norte da África.
Autoria: Alejandra Martínez Gandolfi, Javier Rodríguez Mir
Autoria: As populações Rif das zonas rurais de Ávila organizam uma ou duas vezes por ano viagens terapêuticas a Marrocos em busca da tão esperada baraka dos santos marroquinos para diversos fins, incluindo a cura de vários problemas de saúde. Este trabalho analisa os significados dessas viagens terapêuticas e valoriza as terapias praticadas pelas populações do Rif. Nesse sentido, o trabalho é orientado para os espaços sagrados que compõem mais uma etapa dentro dos itinerários terapêuticos. Em toda a geografia marroquina existem santuários conhecidos pelo nome de marabus que contêm uma elevada carga simbólica e terapêutica. Os peregrinos consideram a flora e a fauna dos santuários como seres sagrados. É notável, especialmente nas áreas do Rif, Médio e Atlas Sul da costa marroquina até Aayún, como eles contribuíram para a criação e preservação de uma reserva de patrimônio natural. Entre as características que uma paisagem terapêutica deve ter é que deve ter árvores centenárias ou milenares e uma árvore sagrada formando um bosque entre elas, a existência de um espelho de água em forma de nascente, poço ou rio e que o santuário seja localizado em uma colina perto de uma cidade. Quanto à cura divina da paisagem, requer o enterro de santos, líderes espirituais, políticos ou militares. As curas nesses espaços sagrados referem-se às doenças mentais, ao exorcismo dos possuídos pelos jnûn (seres espirituais do mal), ao mau-olhado, à magia e à feitiçaria. As peregrinações podem ser acompanhadas por cânticos em que o ritmo e a música permitem ao doente mental expressar a sua libertação da opressão da possessão e iniciar os transes. Nesses espaços sagrados, destaca-se o protagonismo feminino, pois cabe às mulheres diagnosticar as diversas doenças, de origem nervosa e as relacionadas à fertilidade, sexualidade e casamento. Todos estes componentes dotados de forte carga simbólica fazem parte da identidade e religiosidade riffiana, e permanecem associados a determinadas áreas geográficas que ligam o território, a religiosidade, o género e a saúde.
"O retorno precisa ser empírico?": Turismo afrodiaspórico em Dacar, Senegal.
Autoria: Carla Brito Sousa Ribeiro
Autoria: Partindo da pergunta "o retorno precisa ser empírico?", feita pela Professora Renata Menezes (PPGAS/UFRJ) a mim, quando tratamos do meu objeto de pesquisa, procuro debater a noção de "viagens de retorno" e a ideia de turismo diaspórico praticado por afrodescendentes na cidade de Dacar, no Senegal. No contexto de pesquisa que venho aprofundando, tais visitas são empíricas, mas o retorno possui dimensões plurais. Percebê-lo em seu caráter ritual, e até de "peregrinação", para utilizar um termo empregado por Paulla Ebron, ajuda a traçar considerações sobre a diáspora africana e as construções coletivas de um passado comum, mas também de futuros possíveis. Meu argumento é que as ideias de retorno e futuro caminham associadas, e que a prática desta vertente de turismo age como resposta à desmaterialização das populações negras historicamente, à negação de sua constituição familiar, patrimonial, dos usos do território e de seu culto. Em vista disso, minha pesquisa consiste na observação participante, em conversas informais e entrevistas em três atrações turísticas, escolhidas por serem elementos indiciários e construções do patrimônio cultural pan-africano e afrodiaspórico. Entendo que a partir da aproximação de tais destinos será possível depreender a busca pela materialidade e concretização de acesso a um passado ancestral. São eles a Ilha de Gorée (Île de Gorée); o Monumento da Renascença Africana (Monument de la Renaissance Africaine) e o Museu das Civilizações Negras (Musée des Civilisations Noires), todos localizados em Dacar. A partir desses locais pretendo acessar as narrativas históricas e construções de futuro, além das reações e relações dos visitantes com o materialismo deste patrimônio. Desejo pensar como as visitas agem sobre a subjetividade dos turistas e as suas noções sobre diáspora e identidade africana, para além da dimensão representacional de como visitantes se identificam ou não com os discursos de formatação desses espaços.
Quando Estado e Igreja se encontram: reflexões sobre racismo e separação a partir de debates sobre a criminalização do casamento inter-racial na África do Sul.
Autoria: Laura Moutinho
Autoria: Mamphela Ramphele, ativista da luta contra o apartheid, intelectual e médica, argumenta que ao destruir as famílias de múltiplas formas, os arquitetos e executores do regime de segregação produziram um largo e multifacetado espectro de violência, abusos de todos os tipos e a desmobilização das redes de solidariedade e trocas. Algumas famílias foram removidas de suas áreas de moradia duas ou três vezes; outras viveram em situações de êxodo no qual as noções de alteridade e distância sofriam profundas alterações. Condições insalubres de vida foram impostas nos townships e nos bantustões aliados a inúmeros rituais de subordinação social. Não são poucas as etnografias que evidenciam os efeitos de políticas e instituições do apartheid sobre os corpos e as biografias dos sujeitos. Entretanto, ainda não foi suficientemente explorada relação entre igreja e Estado na construção do aparato legal que regulou a separação racial, através da gestão da sexualidade e do gênero. O propósito dessa comunicação é analisar a atuação das igrejas nas comissões de inquérito e debates das décadas de 1930 e 1940, que precederam não somente a instalação do regime do apartheid, mas de modo mais específico, a primeira lei do regime de exceção, aquela que criminalizou os casamentos inter-raciais, a Mixed Mariage Act.
Ausentes da história, presentes no cotidiano: a pesca artesanal em Cabo Verde como mote para uma discussão sobre o poder
Autoria: João Paulo Araújo Silva
Autoria: Realizo pesquisa junto aos pescadores artesanais e peixeiras de Cabo Verde desde 2016. Fiz pesquisa etnográfica junto à comunidade de pesca da ilha do Maio com o objetivo de compreender como se estrutura o cenário de escassez do pescado vivido numa das ilhas mais ricas em peixe do arquipélago. Meus resultados me encaminharam para um contexto de competição desigual pelo peixe que opõe pescadores artesanais a grandes embarcações europeias que "varrem" o mar da região autorizados por um protocolo de pesca assinado com o governo das ilhas. Encontrado inabitado em 1460, Cabo Verde cumpriu papel central para o avanço português nos mares do sul, principalmente em função de sua localização estratégica no atlântico que o transforma, rapidamente, no maior mercado de escravizados do mundo. Com a desobrigação das escalas do tráfico negreiro nas ilhas já em fins do século XVI e o consequente abandono do arquipélago pelos primeiros colonizadores, Cabo Verde será cenário da ascensão de uma das primeiras elites crioulos do mundo colonial. Esta reorganização do poder irá impactar nas estratégias de mobilização da força de trabalho que passam de um modelo clássico de escravidão a uma mobilização de rendeiros e meeiros ligados aos que ficaram conhecidos como brancos da terra. Apesar de não ser possível falarmos na eliminação de hierarquias sociais rígidas, há uma nítida desarticulação do sistema econômico anterior, sendo que a proximidade maior entre estas elites proprietárias e a população em geral produzirá tanto uma certa quebra da ordem escravocrata como também alianças estreitas entre esta elite e a coroa portuguesa. Este arranjo político funciona até o tumultuado século XIX. Após a independência do Brasil, Portugal sente a necessidade de voltar-se para suas possessões africanas na tentativa de reverter os prejuízos causados pela perda de seu território mais lucrativo. Uma série de reformas administrativas vão impactar profundamente a organização do poder nas ilhas. Um dos principais marcos desta época, o investimento de Portugal em escolas para formação de quadros para atuarem como administradores coloniais em suas possessões praticamente abandonadas até então se dará, em parte, articulado com esta elite. Neste breve passeio pela história do arquipélago não nos encontramos com os pescadores, mas aqui acredito que Venna Daas tenha um papel fundamental em nos chamar a atenção para o que ocorre na vida dos sujeitos como consequência de todos estes grandes movimentos. A ausência dos pescadores da história contrasta com sua onipresença no cotidiano das ilhas e ouvi-los de forma engajada e atenta é uma maneira privilegiada de conhecer o percurso social e político deste importante arquipélago tão representativo das potências e vicissitudes do Atlântico Negro.