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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT47: Igualdade Jurídica e de tratamento: etnografias de narrativas, produção de provas, processos decisórios e construção de verdades

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Regina Lúcia da Fonseca

A proposta deste GT é acolher pesquisas empíricas, de inspiração etnográfica, a fim de promover discussões teórico-metodológicas principalmente voltadas para concepções de igualdade jurídica e de tratamento no sistema de administração de conflitos brasileiro, em especial no sistema judicial. A utilização do método comparativo em análises de diferentes sistemas nacionais e/ou internacionais será bem-vinda. Pesquisas em antropologia do direito têm identificado que é frequente, em tribunais brasileiros, a utilização de distintos critérios na condução de procedimentos semelhantes, bem como que não são raras instabilidades semânticas em relação a aspectos processuais centrais, como a produção e a análise de provas. Elas têm constatado confrontos entre diferentes concepções de igualdade e percebido que eles acentuam a percepção de arbitrariedades nos desfechos das causas, fazendo com que o sistema de justiça seja questionado ao apresentar e impor seus resultados. Assim sendo, este GT privilegiará trabalhos de inspiração etnográfica voltados para a descrição densa de práticas e concepções de atores sociais engajados em dinâmicas tais como: 1) produção de provas judiciais, 2) construção narrativa de fatos e seu registro em peças judiciais, 3) formação da convicção de juízes(as) e/ou jurados(as), 4) disputas argumentativas em que sentidos e juízos morais compõem decisões judiciais, 5) práticas judiciais e extrajudiciais operantes em diferentes instâncias do sistema de justiça.

Palavras chave: igualdade jurídica e de tratamento; etnografias de narrativas, produção de provas e processos decisórios; construção de verdades judiciais
Resumos submetidos
"Você pode mentir em casa, mas aqui deve falar a verdade": uma etnografia da Delegacia de Estelionato - PR
Autoria: Joelcyo Véras Costa
Autoria: Esta pesquisa tem como objetivo refletir sobre o modo de produção da verdade em uma delegacia especializada no combate ao estelionato, situada em Curitiba - Paraná. A partir da observação das atividades diárias, determinou-se uma grande diversidade de ocorrências comunicadas e encaminhadas ao órgão. Assim, parte do fazer dos policiais-plantonistas e escrivães consistia em classificar quais relatos e ocorrências deveriam ou não ser registrados e investigados pela especializada. Em meio a isso, verificou-se que, por vezes, a concepção local do que era estelionato conflitava com a das pessoas que procuravam o órgão para noticiar uma ocorrência, bem como com as concepções de outras delegacias especializadas em crimes contra o patrimônio, resultando em conflitos de competência. Nesse sentido, a presente pesquisa busca refletir sobre os modos nativos de determinação do estelionato, da competência do órgão e suas as implicações na produção da materialidade do crime e determinação da verdade. Por essa via, pretende-se analisar problemáticas advindas dessa dinâmica, especialmente com relação à determinação da fronteira entre vítima e estelionatário, ilícito civil e ilícito penal, furto mediante fraude e estelionato, casa e delegacia, empatia e desconfiança. Dentre as conclusões, destaca-se as implicações das noções nativas sobre gênero e moralidade na produção da materialidade do crime e no fazer cotidiano do órgão.
Entre Vítima e Herói: Pensando a mobilização de discursos e narrativas produzidos por políticos e instituições em relação a morte de policiais no estado do Rio de Janeiro
Autoria: Luciano Puccini
Autoria: Esse trabalho é a sistematização de algumas reflexões que vêm sendo construídas no âmbito do projeto "De vidas e mortes: etnografias sobre moralidades, justiça e direitos humanos", associado ao subprojeto "Conflitos, Moralidades e Justiça" inserido no INCT- InEAC (Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos) e desenvolvido por membros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades, o GEPADIM, coordenado pelas professoras Dra. Lucía Eilbaum (UFF) e Dra. Flávia Medeiros (UFSC). O contexto político no qual essa pesquisa se insere é de inúmeras críticas a Academia, a Defensores dos Direitos Humanos, à Mídia e à população de uma forma geral. Essas críticas mobilizam um discurso acusatório que pressupõe que esses setores se "interessam" mais pela vida de criminosos do que dos policiais, alegando que o criminoso é visto como uma vítima social e o policial enquanto agente repressor do Estado. Sendo assim este trabalho tem como finalidade mostrar como a morte de policiais no Estado do Rio de Janeiro é mobilizada politicamente em detrimento as situações contextuais em que os agentes estão envolvidos, de modo a serem classificados dentro da categoria nativa "Herói" ou da categoria política "Vítima". Visando mostrar a partir do trabalho de campo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro com ênfase nos discursos de políticos de diferentes partidos e ideologias em Audiências Públicas e posteriormente na análise de documentos produzidos pelo próprio estado em relação a vitimização policial e mobilizações de casos de violência contra o policial que geraram mobilizações e repercussões nas redes sociais de políticos, instituições de segurança pública e simpatizantes das organizações policiais. Dessa maneira se tenta demonstrar os problemas encontrados na corporação e nas políticas de segurança pública do estado que afetam não só a população como também os agentes e as divergências políticas dos partidos quanto sua resolução, tentando corroborar com os referenciais teóricos, o jeito de fazer política a partir da publicitação do sofrimento.
""Você interpretava esses gestos dele como assédio ou era...?";"Não, estava explícito!" ": Etnografando um processo de estupro de vulnerável pelo viés de gênero das práticas de justiça
Autoria: Patricia Marcondes Amaral da Cunha
Autoria: Na esteira dos debates sobre as práticas institucionais e as economias morais em jogo na atuação dos operadores do Direito, esse trabalho descreve e analisa os documentos escritos e as gravações audiovisuais de um processo judicial estupro de vulnerável que durou sete anos, e culminou com o arquivamento dos autos devido ao falecimento do acusado antes da promulgação da sentença. Mesmo sem conhecer seus possíveis desfechos, a tramitação do processo traz questões relevantes sobre formas de instrui-lo, de valorar as provas, identificar fatos e interpretar e aplicar o direito, etapas essas que são invariavelmente atravessadas por marcadores de gênero e geração, sobretudo tendo em mente o enquadre institucional de um Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica onde o mesmo transcorreu. Observa-se que as provas periciais produzidas (exame de conjunção carnal, entrevista psicológica, perícia em telefones celulares ou análise grafológica de correspondências escritas) pouco elucidaram do caso, restando como prova central a oitiva da vítima e de outras testemunhas. Pretende-se, portanto, discutir como o peso da prova testemunhal da vítima, em termos de como seu caráter de "verdade", é balisado pelo Ministério Público e pela Defesa; como os institutos legais acionados - Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal - são articulados para analisar a vitimidade de uma criança/adolescente/jovem do gênero feminino diante de um crime sexual e a suposta autoria do crime por parte do pai; e problematizar se (e como) os impactos da denúncia sob os planos econômico, afetivo e familiar são levados em consideração na hora de instruir o processo e valorar as provas. A despeito da lógica adversarial envolvida no processo judicial, haveria algo que Ministério Público e Defesa compartilham na leitura do caso? Mesmo sem a sentença, quais as manifestações do magistrado? Em suma, conclui-se que o viés reprodutor de desigualdades e preconceitos de gênero no exercício jurisdicional diante de crimes sexuais, já evidenciado em pesquisas antropológicas no Brasil desde a década de 1990, ainda se faz presente no caso em tela. Entretanto, a contribuição deste trabalho reside não em propor um "dever ser" das práticas de Justiça, mas explicitar como suas lógicas se reatualizam no cotidiano, a partir, por exemplo, daquilo que incorporam das mudanças no âmbito legislativo e institucional quanto à proteção das mulheres adultas e crianças / adolescentes (tais como a aplicação de medidas protetivas e prisão em caso de descumprimento) e dos impasses que se mantêm no processo de produção de justiça em crimes de estupro de vulnerável. Busca-se, ainda, nesse sentido, apontar alternativas debatidas no espaço acadêmico e judicial brasileiro e de outros países.
Facções criminosas em Centros Socioeducativos da cidade de Fortaleza, Ceará: surgimento, moralidades e conflitos violentos.
Autoria: Renan Santos Pinheiro
Autoria: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma interpretação antropológica sobre o surgimento de coletivos criminais conhecidos socialmente como facções criminosas em unidades de internação (destinadas a adolescentes e jovens privados de liberdade) da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, suas moralidades e conflitos. A pesquisa se constrói a partir do método etnográfico, por meio de observações de campo e entrevistas individuais com pessoas que, de algum modo, tiveram suas vidas atravessadas pelo sistema socioeducativo. Após análise dos dados etnográficos coletados, o estudo argumenta que a existência de adolescentes pertencentes a facções criminosas no interior das unidades de internação implicam em grandes problemáticas às vidas das pessoas que circundam o sistema socioeducativo (adolescentes, familiares e profissionais), que começa a funcionar por meio de uma rede de moralidades internas que enseja rivalidades, conflitos e violências.
Adolescentes em conflito com a lei: sujeitos de quais direitos?
Autoria: Flávia de Freitas Cabral
Autoria: O objetivo deste ensaio é analisar a lacuna existente entre a legislação brasileira, que conferiu o status de sujeito de direito a todas as crianças e adolescentes com base na doutrina de proteção integral, e a fundamentação utilizada pelos operadores de justiça nos processos de apuração de atos infracionais que resultaram no decreto de privação de liberdade dos adolescentes. A argumentação terá como base os dados coletados em pesquisa na Vara Regional de Atos Infracionais da Infância e da Juventude - VRAIIJ do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em relação às apreensões em flagrante que resultaram na internação provisória de adolescentes pela prática de atos infracionais no ano de 2018. Os dados apontam que no ano de 2018, foram apreendidos em flagrante 3.291 adolescentes no Distrito Federal, sendo que 1.591 tiveram a internação provisória decretada, o que corresponde a 48,34% do total. Os dados da VRAIIJ apontam que no ano de 2018, as apreensões de adolescentes as quais culminaram na decretação de internação provisória pelos atos infracionais análogos aos crimes de roubo e de tráfico de drogas foram de 55% e 18,4%, respectivamente. Em contraponto, os atos infracionais análogos aos crimes de homicídio e latrocínio corresponderam apenas a 4,7% e 4,5%, respectivamente. Observa-se, portanto, que a maior parte dos atos infracionais cometidos por adolescentes é constituída por roubo e tráfico de drogas, delitos que, em tese, não atentam contra a vida e, portanto, não deveriam ensejar no decreto de medida gravosa como a restrição de liberdade. Apesar disso, o judiciário ainda adota a privação de liberdade como decisão majoritária na solução de conflitos de jovens infratores. O livre convencimento motivado do juiz no processo decisório relativo às internações provisórias dos adolescentes acusados pela prática de atos infracionais possibilita aos magistrados a aplicação de medidas mais gravosas pela prática de atos simples, sob os argumentos de "garantia de segurança pessoal" e "manutenção da ordem pública" (ECA, art. 174). Mesmo que os atos infracionais mais cometidos pelos adolescentes não envolvam uso de violência física ou grave ameaça à vida, a decretação de internação provisória tem se mostrado uma prática comum nas decisões proferidas após as apreensões. Isso resulta no encarceramento de jovens pobres e negros cada vez mais notório no país e nos remete ao período do antigo Código de Menores, nas vezes em que o judiciário se utiliza do mecanismo de privação de liberdade "em nome de sua proteção, não de sua responsabilização".
Justiçamento popular e os sentidos (in) visíveis nos processos penais: dois casos em revista
Autoria: A. L Lobato
Autoria: Este trabalho busca identificar os sentidos empregados e/ou obliterados sobre a noção de justiça por meio da análise de dois processos judiciais relacionados a casos de linchamento cuja repercussão na imprensa nacional foi bastante significativa nos últimos anos, a saber o caso de Fabiana Maria de Jesus, morta no Guarujá em 2014 e Cledenilson Pereira da Silva morto em São Luis em 2015. Importa destacar que a prática de linchamento não dispõe de correspondente algum no Código Penal Brasileiro, de modo que tais casos uma vez denunciados pelo Ministério Público são enquadrados como casos de homicidio e, portanto, tratados individualmente ainda que em processos apensados. A literatura sociológica brasileira sobre violência cuja produção é extensa desde os anos 80, parece ter enfocado mais detidamente nas violências tipificadas como crime e, após a redemocratização, no aperfeiçoamento institucional da justiça e das políticas públicas de enfrentamento a elas. Dentre os principais trabalhos brasileiros, que versaram sobre linchamento até o presente momento, a grande maioria deles, deu atenção, sobretudo, a notícias de jornais. Tal fato se justifica em parte, por reportagens figurarem como o principal meio de tomar conhecimento sobre um caso, mas também, pela invisibilidade deste fenômeno em dados administrativos ou documentos oficiais, uma vez que tais práticas não estarem tipificadas criminalmente no código penal brasileiro. Dentre os enquadramentos explicativos oferecidos, portanto, há dois grupos importantes. O primeiro deles caracteriza o evento pela sua aparente irracionalidade enquanto o segundo, entende tais atos com o resultado de diferentes formas de desigualdade, opressão, ausência e ineficiência do Estado, implicando numa certa racionalidade coletiva e socialmente constituída (BENEVIDES, 1982; SOUZA, 1999; SINHORETO, 2001; SINGER, 2003; NATAL, 2013). Com efeito, estes estudos circunscrevem o linchamento como uma estratégia de justiçamento popular, ou seja, uma forma de "fazer justiça pelas próprias mãos". Buscarei identificar os sentidos e juízos morais empregados pelos diferentes atores jurídicos atuantes nestes dois processos, seguindo a trilha metodológica proposta por Mariza Corrêa de observar os elementos de que se utilizam os diferentes atores jurídicos para apresentação dos acusados e das vítimas de modo a obter aceitação dos julgadores.
El principio de igualdad como estructurador social y formador de derecho
Autoria: Maria Laura Moreno Fernandez, Antônio
Autoria: Este trabajo propone una línea teórica jurídica de corte psico-antropológica por medio del cual se expone y fundamenta al principio de igualdad como formador del derecho dentro del orden ideal formal. Y también se expone y fundamenta que dentro del orden psico-antropológico este principio de igualdad estructura las relaciones sociales otorgándoles seguridad. El principio de igualdad es un elemento psíquico que nace del instinto de auto-conservación identificado por Freud (2015) dentro de las pulsiones "yoicas". Este instinto de auto-conservación exige que el entorno físico sea seguro, en este sentido se expresa dentro del orden antropológico como principio de seguridad, pero también exige en términos sociales la seguridad en las relaciones sociales. Esto se exige y expresa en un orden ideal y abstracto el cual permite relacionarnos de forma simbólica, y es aquí donde domina el principio de igualdad. Toda relación social es segura en términos ideales simbólicos, si se reconoce en el otro la igualdad ideal, abstracta y simbólica que permite la integración social en un marco de estabilidad. El derecho como rector de la expresión social de un orden simbólico, se termina de formar bajo este principio de igualdad respondiendo a la necesidad del instinto de auto-conservación que dentro del orden social y jurídico se denomina principio de seguridad.
"Justiça não é para nós": etnografia e possibilidades da pesquisa documental em confrontos entre punks e skinheads em Curitiba
Autoria: Tatiana de Oliveira
Autoria: "Tribunal de Justiça anula julgamento que condenou skinheads por morte de punk em Curitiba". A notícia de 08 de outubro de 2021 traz à tona uma questão que permeia o punk brasileiro desde o seu surgimento, em meados da década de 1980, e em Curitiba se faz presente cotidianamente entre uma parcela das pessoas que se reconhecem e são reconhecidas como punks. Em meu projeto de pesquisa contemplo, no âmbito da cultura punk, integrantes que se distinguem de outros principalmente em relação principalmente à classe. São os autointitulados punks das ruas, punks do subúrbio, punks maloqueiros, punks sujos ou punks de verdade. Tal distinção implica numa série de entendimentos e práticas que são alvo de críticas por parte dos comumente chamados punks de pub, punks burgueses, punks de final de semana, falsos punks ou apenas simpatizantes. Almejando qualificar minha inserção junto aos punks das ruas, realizei, em fase preliminar ao campo, pesquisa documental em processos judiciais e notícias veiculadas em diferentes meios de comunicação. Encontrei menções a ocorrências policiais, ações penais e episódios relatados que nem sempre chegaram a ser alvo de registro formal, desde 1986. Procurei ainda refletir sobre a influência das fontes documentais no campo e a própria ideia de trabalho de campo. Neste trabalho, após traçar uma breve contextualização do surgimento da cultura skinhead e sua relação com o punk, descrevo os confrontos a céu aberto que envolvem skinheads na cidade de Curitiba, de 1986 a 2005 e menciono outros, ocorridos após 2005. Descrevo ainda os percursos etnográficos que tornaram a pesquisa documental, antes compreendida como plano de fundo, à componente central na pesquisa. Finalmente, indico que a narrativa policial reforça o punk das ruas como corpo abjeto e, portanto como uma vida menos passível de luto - em sintonia com depoimentos de defesa de familiares ou dos próprios skinheads. As falas dos delegados negando a motivação racista dos homicídios, o descaso no pagamento de pensão para a mãe de um jovem assassinado, os famosos e caríssimos advogados de defesa dos skinheads, a demora dos julgamentos, a prescrição dos crimes, o ingresso de alguns skins no poder judiciário e no corpo policial e a vida empresarial bem sucedida de outros parecem operar na produção de verdades e discursos de modo que os punks sejam vistos como uma ameaça à paz e segurança de um sujeito adaptado ao sistema político e econômico.
Fluxos de Processos, Fluxos de Sentidos, Fluxos dos Sujeitos : A Produção do Inimputável Através de Movimentações Jurídicas e Psiquiátricas
Autoria: Victória Mello Fernandes
Autoria: O presente resumo refere-se a um recorte da pesquisa exploratória de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa tem como escopo de análise a produção do tipo social "louco-criminoso", o inimputável no cruzamento dos saberes jurídicos e psiquiátricos nos processos de execução criminal no estado do Rio Grande do Sul. A investigação qualitativa tem como metodologia e estratégia pesquisa a etnografia documental aliada ao estudo de caso, buscando compreender como as movimentações dentro do processo de execução criminal formam sentido, verdade jurídica sobre os sujeitos. Os processos de execução criminal, ao contrário dos processos dos presos imputáveis, estão em constante movimentação, especialmente no período da Pandemia da Covid-19, sendo o espaço-tempo de consulta das partes - defesa e acusação. Nesse sentido, processos, que atualmente fazem parte de um sistema virtual de acesso, são também a trajetória - escrita - jurídico psiquiátrica dos sujeitos. Aqueles que ainda correm, sujeitos que ainda vivem em manicômios-judiciários, são recorrentemente movimentados nesses sistemas de acessos. Nesse momento, traz-se análises preliminares sobre esses dados, fluxos rastreados através da imersão no campo, nos processos. Aponta-se para uma múltipla autoria na constituição desse tipo social, que não está circunscrita ao campo jurídico. Os sujeitos são inimputados de seus atos e tornam-se inimputáveis, por avaliação de um perito psiquiatra e pela decisão de um juiz de direito de uma Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas. Mas esse tornar-se inimputável, ser capturado por esses saberes, assim como outras sentenças, necessita de um processo de execução criminal, no qual múltiplos atores estão relacionando-se, mediando e mediados por tecnologias como papéis, computadores, doutrinas, manuais psiquiátricos, laudos, etc. Essa gama de atores é essencial para que os fluxos funcionem, para que as informações cheguem e partam, para que diligências e determinações sejam tomadas, para que o processo ocorra, a medida de segurança seja cumprida e o inimputável exista.
"Você pode mentir em casa, mas aqui deve falar a verdade": uma etnografia da Delegacia de Estelionato - PR
Autoria: Joelcyo Véras Costa
Autoria: Esta pesquisa tem como objetivo refletir sobre o modo de produção da verdade em uma delegacia especializada no combate ao estelionato, situada em Curitiba - Paraná. A partir da observação das atividades diárias, determinou-se uma grande diversidade de ocorrências comunicadas e encaminhadas ao órgão. Assim, parte do fazer dos policiais-plantonistas e escrivães consistia em classificar quais relatos e ocorrências deveriam ou não ser registrados e investigados pela especializada. Em meio a isso, verificou-se que, por vezes, a concepção local do que era estelionato conflitava com a das pessoas que procuravam o órgão para noticiar uma ocorrência, bem como com as concepções de outras delegacias especializadas em crimes contra o patrimônio, resultando em conflitos de competência. Nesse sentido, a presente pesquisa busca refletir sobre os modos nativos de determinação do estelionato, da competência do órgão e suas as implicações na produção da materialidade do crime e determinação da verdade. Por essa via, pretende-se analisar problemáticas advindas dessa dinâmica, especialmente com relação à determinação da fronteira entre vítima e estelionatário, ilícito civil e ilícito penal, furto mediante fraude e estelionato, casa e delegacia, empatia e desconfiança. Dentre as conclusões, destaca-se as implicações das noções nativas sobre gênero e moralidade na produção da materialidade do crime e no fazer cotidiano do órgão.
Processos de vitimização em disputa: Analisando o lugar dos réus na judicialização da Violência contra a Mulher no Brasil
Autoria: Matilde Quiroga Castellano
Autoria: A partir do presente artigo pretende-se analisar os processos de vitimização que atravessam a judicialização da Violência de Gênero no contexto brasileiro. Esta proposta faz parte de reflexões mais amplas que estão sendo elaboradas durante a escrita da Tese de Doutorado em Antropologia Social da autora. Particularmente, o presente texto tem como objetivo analisar falas e narrativas dos réus e sua defesa, extraídas de processos de judicialização da violência contra a mulher. Trata-se principalmente de refletir em relação a como em busca da estabelecer uma verdade jurídica, esses sujeitos atravessam, vivenciam e disputam essa verdade movimentando o que se denomina processos de vitimização. O embasamento para tais reflexões está ancorado no trabalho de campo realizado durante o ano 2019, que foi contemplado pelo Projeto "Estudos da judicialização da "violência de gênero" e difusão de práticas alternativas numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina" (Chamada CNPq nº 22/2016), e que consistiu em etnografar mais de cem audiências que envolviam principalmente fatos tipificados na Lei Maria Da Penha (Lei 11.340/06) e na denominada Lei de Feminicídio (Lei 13.104/15), num Juizado Especial Criminal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em uma das áreas Metropolitanas de Santa Catarina, Brasil. A partir da presença em campo, participando e observando as audiências, foi possível identificar três eixos através dos quais os réus e aqueles que os defendem, disputam de maneira preponderante o lugar de vítima nos processos nos quais estão envolvidos. Assim, os três discursos principais que atravessam as falas dos réus e suas defesas se referem ao consumo problemático de substâncias, a questões ligadas à saúde mental do réu e, por último, situações em que a vítima aprece como alvo de críticas, situações principalmente baseadas em avaliações de papeis de gênero e códigos de honra. Estes discursos se misturam entre falas de réus que negam os fatos, seja parcial o totalmente, réus que os reinterpretam gerando novas versões e réus que admitem e se responsabilizam dos fatos que estão sendo denunciados. Nesse sentido, foi possível identificar momentos em que os réus no processo, através das arguições em sua defesa, podem pleitear o lugar de vítima, colocando em movimentação certas estratégias apresentadas frente a "agentes vitimadores", que convalidam ou não esses discursos que se desenvolvem numa "lógica do contraditório", própria do espaço jurídico local.
Entre Vítima e Herói: Pensando a mobilização de discursos e narrativas produzidos por políticos e instituições em relação a morte de policiais no estado do Rio de Janeiro
Autoria: Luciano Puccini
Autoria: Esse trabalho é a sistematização de algumas reflexões que vêm sendo construídas no âmbito do projeto "De vidas e mortes: etnografias sobre moralidades, justiça e direitos humanos", associado ao subprojeto "Conflitos, Moralidades e Justiça" inserido no INCT- InEAC (Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos) e desenvolvido por membros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades, o GEPADIM, coordenado pelas professoras Dra. Lucía Eilbaum (UFF) e Dra. Flávia Medeiros (UFSC). O contexto político no qual essa pesquisa se insere é de inúmeras críticas a Academia, a Defensores dos Direitos Humanos, à Mídia e à população de uma forma geral. Essas críticas mobilizam um discurso acusatório que pressupõe que esses setores se "interessam" mais pela vida de criminosos do que dos policiais, alegando que o criminoso é visto como uma vítima social e o policial enquanto agente repressor do Estado. Sendo assim este trabalho tem como finalidade mostrar como a morte de policiais no Estado do Rio de Janeiro é mobilizada politicamente em detrimento as situações contextuais em que os agentes estão envolvidos, de modo a serem classificados dentro da categoria nativa "Herói" ou da categoria política "Vítima". Visando mostrar a partir do trabalho de campo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro com ênfase nos discursos de políticos de diferentes partidos e ideologias em Audiências Públicas e posteriormente na análise de documentos produzidos pelo próprio estado em relação a vitimização policial e mobilizações de casos de violência contra o policial que geraram mobilizações e repercussões nas redes sociais de políticos, instituições de segurança pública e simpatizantes das organizações policiais. Dessa maneira se tenta demonstrar os problemas encontrados na corporação e nas políticas de segurança pública do estado que afetam não só a população como também os agentes e as divergências políticas dos partidos quanto sua resolução, tentando corroborar com os referenciais teóricos, o jeito de fazer política a partir da publicitação do sofrimento.
Do "dever ser" ao "ser": uma análise sociojurídica da audiência de conciliação na comarca de barbalha/ce
Autoria: Natália Viana Nogueira
Autoria: O presente estudo busca realizar uma análise do instrumento processual chamado "audiência de conciliação", previsto no ordenamento jurídico brasileiro e ainda mais evidenciado a partir do Código de Processo Civil. A partir dele, diversos debates sobre a melhor forma de manejo, implementação e institucionalização desse mecanismo foram intensificados, que pese a forte cultura brasileira de judicialização e litigiosidade dos conflitos (WATANABE, 2007). Não obstante, diversas compreensões se dispõem a observar esse instituto a partir de uma perspectiva apenas legalista. Abordagens que proporcionam questionamentos e discussões quanto ao "fazer judicial" em si, sendo realizadas pelos próprios membros do meio jurídico, ou seja, a ausência da aplicação de um caminho científico sociojurídico para compreensão desse recurso pode constituir uma falha limitadora quanto à perspectiva de identificação, implementação e melhoria. Por essa razão, objetiva-se, identificar, qual o desenho que o meio conciliatório da audiência ganha durante a sua realização através da perspectiva dos seus atores participantes. O Centro Judiciário de Resolução de Conflitos da comarca de Barbalha - CE servirá como campo para essa execução. É preciso, então, evidenciar as especificidades, individualidades e olhares que esses membros possuem sobre eles e sobre o próprio instrumento jurídico que estão se valendo, movimento que é indispensável para repensar esse fazer judicial a partir de uma óptica que considere não apenas o "dever ser", mas também o "ser". Buscar-se, ressaltar as trajetórias e experiências que fazem com o que cada agente desse ritual (SCHRITZMEYER, 2001) possua uma identidade e não seja referenciado apenas por um número processual (MAUSS, 2003). Nesse sentido, para além de uma explanação de como a conciliação é retratada por meio das obras jurídicas dogmáticas, também se valerá da compreensão sociojurídica do instituto processual. Diante da aplicação metodológica de uma observação participante será possível notar circunstâncias, atos e espaços que permeiam a sua realização e que não são identificados pelo primeiro caminho anteriormente apontado, que se funda, tão logo, apenas no "dever ser" (VASCONCELLOS; NUÑEZ, 2020). Esses pontos dialogam e interferem na construção e na forma de identificação da audiência frente aos seus interlocutores, evidenciando, para além de uma análise estritamente normativa, problemáticas e questões estruturais desse fazer. Através da observação participante (VALLADARES, 2007) e com a aplicação de entrevistas não-diretivas, se busca permear e vivenciar o espaço em que a audiência ocorre e ganha vida. Dentro dessa dinâmica, também pretende-se compreender quem são esses interlocutores, como eles interpretam esse recurso conciliatório.
Facções criminosas em Centros Socioeducativos da cidade de Fortaleza, Ceará: surgimento, moralidades e conflitos violentos.
Autoria: Renan Santos Pinheiro
Autoria: O presente artigo tem por objetivo apresentar uma interpretação antropológica sobre o surgimento de coletivos criminais conhecidos socialmente como facções criminosas em unidades de internação (destinadas a adolescentes e jovens privados de liberdade) da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, suas moralidades e conflitos. A pesquisa se constrói a partir do método etnográfico, por meio de observações de campo e entrevistas individuais com pessoas que, de algum modo, tiveram suas vidas atravessadas pelo sistema socioeducativo. Após análise dos dados etnográficos coletados, o estudo argumenta que a existência de adolescentes pertencentes a facções criminosas no interior das unidades de internação implicam em grandes problemáticas às vidas das pessoas que circundam o sistema socioeducativo (adolescentes, familiares e profissionais), que começa a funcionar por meio de uma rede de moralidades internas que enseja rivalidades, conflitos e violências.
""Você interpretava esses gestos dele como assédio ou era...?";"Não, estava explícito!" ": Etnografando um processo de estupro de vulnerável pelo viés de gênero das práticas de justiça
Autoria: Patricia Marcondes Amaral da Cunha
Autoria: Na esteira dos debates sobre as práticas institucionais e as economias morais em jogo na atuação dos operadores do Direito, esse trabalho descreve e analisa os documentos escritos e as gravações audiovisuais de um processo judicial estupro de vulnerável que durou sete anos, e culminou com o arquivamento dos autos devido ao falecimento do acusado antes da promulgação da sentença. Mesmo sem conhecer seus possíveis desfechos, a tramitação do processo traz questões relevantes sobre formas de instrui-lo, de valorar as provas, identificar fatos e interpretar e aplicar o direito, etapas essas que são invariavelmente atravessadas por marcadores de gênero e geração, sobretudo tendo em mente o enquadre institucional de um Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica onde o mesmo transcorreu. Observa-se que as provas periciais produzidas (exame de conjunção carnal, entrevista psicológica, perícia em telefones celulares ou análise grafológica de correspondências escritas) pouco elucidaram do caso, restando como prova central a oitiva da vítima e de outras testemunhas. Pretende-se, portanto, discutir como o peso da prova testemunhal da vítima, em termos de como seu caráter de "verdade", é balisado pelo Ministério Público e pela Defesa; como os institutos legais acionados - Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal - são articulados para analisar a vitimidade de uma criança/adolescente/jovem do gênero feminino diante de um crime sexual e a suposta autoria do crime por parte do pai; e problematizar se (e como) os impactos da denúncia sob os planos econômico, afetivo e familiar são levados em consideração na hora de instruir o processo e valorar as provas. A despeito da lógica adversarial envolvida no processo judicial, haveria algo que Ministério Público e Defesa compartilham na leitura do caso? Mesmo sem a sentença, quais as manifestações do magistrado? Em suma, conclui-se que o viés reprodutor de desigualdades e preconceitos de gênero no exercício jurisdicional diante de crimes sexuais, já evidenciado em pesquisas antropológicas no Brasil desde a década de 1990, ainda se faz presente no caso em tela. Entretanto, a contribuição deste trabalho reside não em propor um "dever ser" das práticas de Justiça, mas explicitar como suas lógicas se reatualizam no cotidiano, a partir, por exemplo, daquilo que incorporam das mudanças no âmbito legislativo e institucional quanto à proteção das mulheres adultas e crianças / adolescentes (tais como a aplicação de medidas protetivas e prisão em caso de descumprimento) e dos impasses que se mantêm no processo de produção de justiça em crimes de estupro de vulnerável. Busca-se, ainda, nesse sentido, apontar alternativas debatidas no espaço acadêmico e judicial brasileiro e de outros países.
Linchamentos e processos de justiça no Amazonas
Autoria: KAROLLINE DE ANDRADE PORTO, Flávia Melo
Autoria: Buscando entender os linchamentos a partir de processos de justiça, procedimentos administrativos e de reportagens sobre o assunto, desenvolvemos pesquisa documental no Estado do Amazonas (Porto, 2021), com vistas a identificar as características de linchamentos, aqui considerados como vários fenômenos distintos entre si (Sinhoretto, 2002). Para isso, a partir de estudo de caso de um jovem negro, identificamos e descrevemos a relação entre racismo e práticas de linchamento, geralmente, desencadeados em regiões segregadas e marginalizadas, o perfil dos atores envolvidos no processo, fazendo uma descrição moral e física, assim como, a forma como são repercutidos nos meios de comunicação, com destaque a programas de televisão com temática policial, os quais costumam veicular prisões e imagens de pessoas envolvidas em crimes e ocorrências nas periferias, diversamente quando se trata de operações/prisões realizadas em bairros nobres da capital Manaus. Foram analisados dados qualitativos levantados e o caminho percorrido para obtê-los no Sistema Administrativo do Estado e em processos do Sistema e-Saj, do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, examinando-se os procedimentos e a construção dos acontecimentos pelos agentes de Estado. Conforme Mariza Corrêa (1983), os inquéritos policiais e termos circunstanciados de ocorrência gerados a partir dos registros (ou demais hipóteses do art. 5º, CPP) têm em si incorporados os fatos e extraídos deles uma versão. O procedimento "já é um afastamento (do fato) e uma interferência sobre ele na medida em que há uma ordenação pelos agentes policiais que selecionam quem estará presente, com direito a palavra, e o que deve ou não constar como prova nos autos" (idem, 1983, p. 35). E, identificado elevado índice de atos de linchamentos, verificamos uma racionalidade permeada por motivações de vingança privada, justiçamento imediato e moralidades estruturantes da comunidade envolvida, como o racismo, motivando, nesses casos, atos com maior violência. Posto isso, demonstrou-se a necessidade do exame do fenômeno e início do pensamento sobre alterações das relações de poder, sobretudo, na atuação das instituições oficiais.
PROCESSOS EM SEGREDO DE JUSTIÇA E AS BARREIRAS NO CAMPO ETNOGRÁFICO: reflexões sobre disputas no jogo das ações de alienação parental
Autoria: Glaucia Fernanda Oliveira Martins Batalha
Autoria: Este trabalho é fruto de inquietações surgidas durante a pesquisa de campo em meio a processos de alienação parental, objeto do trabalho de tese ainda em desenvolvimento. Na pesquisa antropológica quando o campo escolhido é o sistema de justiça invariavelmente o trabalho empírico recorrerá aos processos. É o caso dos processos de alienação parental onde os documentos envolvidos são tecnologias de produção de verdades e de categorização de indivíduos, pois objetiva identificar a figura do alienador que supostamente interferiria de forma promovida ou induzida "na formação psicológica da criança ou do adolescente para que repudie o genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este" (art. 2º da Lei 12.318/2010). Nesta perspectiva, nos interessa investigar se os documentos envolvidos nesses processos contribuem para a produção de sujeitos generificados por meio de disputas em torno da produção de verdades. Nos interessa analisar se o processo de alienação parental se desenha demarcando lugares sociais do gênero e contribuindo para a manutenção das relações de poder, da dominação do masculino sobre o feminino e do viés heteronormativo. Contudo, alguns entraves à nossa investigação etnográfica se apresentam de maneira enfática e desafiadora e vão além da desconfiança do judiciário quando a pesquisa se relaciona às questões de gênero. Dentre eles o fato dos documentos produzidos nesses processos serem permeados pelo segredo de justiça decorrente do direito à intimidade das famílias. Entretanto, cabe problematizar tal "confidenciabilidade" a partir da constatação de que as decisões judiciais tomadas em segunda instância - aquelas produzidas pelos desembargadores de forma monocrática ou colegiada - são publicizadas pelos bancos de dados dos Tribunais de Justiça, sendo preservado apenas os nomes dos menores em iniciais, mas os nomes dos demais membros da família são visíveis. Isto é, a instituição que "guarda" o segredo é a mesma que, paradoxalmente, expõe. Ademais, hoje os documentos jurídicos de primeira instância -aqueles produzidos nas varas de família- não são mais "arquivados" fisicamente, mas por meio do Processo Judicial Eletrônico- PJe, o que torna o acesso aos processos de alienação parental complexo e dependente de uma rede de vínculos prévios como credenciais de permissividade. Os pontos elencados, são alguns dos entraves encontrados nesse campo de estudo, que estão permeados de disputas de poder. Considerando que há poucos aportes na bibliografia clássica que versem sobre as possibilidades analíticas e metodológicos de etnografias com/dos documentos em segredo de justiça, entendemos que evidenciar as barreiras nas investigações antropológicas é uma forma de encontrar caminhos teórico-metodológicos alternativos.
Justiçamento popular e os sentidos (in) visíveis nos processos penais: dois casos em revista
Autoria: A. L Lobato
Autoria: Este trabalho busca identificar os sentidos empregados e/ou obliterados sobre a noção de justiça por meio da análise de dois processos judiciais relacionados a casos de linchamento cuja repercussão na imprensa nacional foi bastante significativa nos últimos anos, a saber o caso de Fabiana Maria de Jesus, morta no Guarujá em 2014 e Cledenilson Pereira da Silva morto em São Luis em 2015. Importa destacar que a prática de linchamento não dispõe de correspondente algum no Código Penal Brasileiro, de modo que tais casos uma vez denunciados pelo Ministério Público são enquadrados como casos de homicidio e, portanto, tratados individualmente ainda que em processos apensados. A literatura sociológica brasileira sobre violência cuja produção é extensa desde os anos 80, parece ter enfocado mais detidamente nas violências tipificadas como crime e, após a redemocratização, no aperfeiçoamento institucional da justiça e das políticas públicas de enfrentamento a elas. Dentre os principais trabalhos brasileiros, que versaram sobre linchamento até o presente momento, a grande maioria deles, deu atenção, sobretudo, a notícias de jornais. Tal fato se justifica em parte, por reportagens figurarem como o principal meio de tomar conhecimento sobre um caso, mas também, pela invisibilidade deste fenômeno em dados administrativos ou documentos oficiais, uma vez que tais práticas não estarem tipificadas criminalmente no código penal brasileiro. Dentre os enquadramentos explicativos oferecidos, portanto, há dois grupos importantes. O primeiro deles caracteriza o evento pela sua aparente irracionalidade enquanto o segundo, entende tais atos com o resultado de diferentes formas de desigualdade, opressão, ausência e ineficiência do Estado, implicando numa certa racionalidade coletiva e socialmente constituída (BENEVIDES, 1982; SOUZA, 1999; SINHORETO, 2001; SINGER, 2003; NATAL, 2013). Com efeito, estes estudos circunscrevem o linchamento como uma estratégia de justiçamento popular, ou seja, uma forma de "fazer justiça pelas próprias mãos". Buscarei identificar os sentidos e juízos morais empregados pelos diferentes atores jurídicos atuantes nestes dois processos, seguindo a trilha metodológica proposta por Mariza Corrêa de observar os elementos de que se utilizam os diferentes atores jurídicos para apresentação dos acusados e das vítimas de modo a obter aceitação dos julgadores.
El principio de igualdad como estructurador social y formador de derecho
Autoria: Maria Laura Moreno Fernandez, Antônio
Autoria: Este trabajo propone una línea teórica jurídica de corte psico-antropológica por medio del cual se expone y fundamenta al principio de igualdad como formador del derecho dentro del orden ideal formal. Y también se expone y fundamenta que dentro del orden psico-antropológico este principio de igualdad estructura las relaciones sociales otorgándoles seguridad. El principio de igualdad es un elemento psíquico que nace del instinto de auto-conservación identificado por Freud (2015) dentro de las pulsiones "yoicas". Este instinto de auto-conservación exige que el entorno físico sea seguro, en este sentido se expresa dentro del orden antropológico como principio de seguridad, pero también exige en términos sociales la seguridad en las relaciones sociales. Esto se exige y expresa en un orden ideal y abstracto el cual permite relacionarnos de forma simbólica, y es aquí donde domina el principio de igualdad. Toda relación social es segura en términos ideales simbólicos, si se reconoce en el otro la igualdad ideal, abstracta y simbólica que permite la integración social en un marco de estabilidad. El derecho como rector de la expresión social de un orden simbólico, se termina de formar bajo este principio de igualdad respondiendo a la necesidad del instinto de auto-conservación que dentro del orden social y jurídico se denomina principio de seguridad.
Quem pode investigar e produzir verdades sobre as mortes decorrentes da intervenção policial? Conflitos de competência investigativa e letalidade policial racializada em Minas Gerais.
Autoria: Mayara Ferreira Mattos
Autoria: A polícia militar mineira considera a investigação das mortes praticadas por seus agentes contra civis como de sua competência, sendo as mesmas investigadas por meio de um IPM (Inquérito Policial Militar). Valendo-se dos Código Penal Militar (CPM) e Código de Processo Penal Militar (CPPM), a corporação instaura procedimentos investigativos próprios, até mesmo negando e dificultando os procedimentos investigativos operacionalizados pela Polícia Civil do estado, que fica condicionada às provas produzidas pela PMMG para produção do seu inquérito. Assim, essa disputa pela dimensão cartorial (produção burocrática da verdade e do registro) contraria tanto diretrizes internacionais quanto normativas e resoluções produzidas pelo Ministério Público de Minas Gerais que recomenda a investigação dos casos de letalidade policial por órgão ou entidade externa à qual pertencem os agentes envolvidos nos fatos. Esse conflito de competência gera uma "blindagem da polícia que mata" (FERREIRA, 2020), pois são os IPMs produzidos pela corporação que definem se o homicídio foi doloso ou culposo. Apenas os casos em que se constata o dolo seguirão para a Justiça Comum e talvez julgados pelo Tribunal do Júri. De acordo com a Nota Técnica 004/2014 elaborada pelo MPMG, a realização de investigações concomitantes e totalmente independentes por parte das polícias militar e civil gera prejuízo à apuração dos fatos e à coleta de provas. No relatório final "Letalidade e vitimização policial em Minas Gerais" produzidos pela Fundação João Pinheiro em cooperação técnica com o MPMG, foi sugerido que o IPM produzido tem por finalidade endossar a narrativa policial de legítima defesa por injusta agressão (excludente de ilicitude). Nesse sentido, a vida pregressa da vítima se sobrepõe a ação policial que ensejou a morte. Essa dimensão moral atravessa muitos agentes públicos envolvidos nesses processos e procedimentos, assim como parte da sociedade, orientada moralmente pela lógica racial do extermínio de sujeitos construídos historicamente como perigosos, violentos e indesejados, produzindo, consequentemente, sujeitos matáveis. Desse modo, o objetivo dessa proposta é refletir etnograficamente a partir de dispositivos legais e administrativos (tais como: leis, decretos, códigos penais, normativas e resoluções nacionais e internacionais) como esse conflito de competência "blinda" a PMMG em casos de jovens negros assassinados no Aglomerado da Serra/Belo Horizonte/MG. Para tal compreensão serão analisados dois casos ocorridos no território em questão, visando trazer ainda para o debate que apesar de não ser a polícia que mais mata no país, a PMMG produz uma matabilidade racial específica e singular definida por uma alta padronização jurídica dos seus atos e procedimentos.
A urgência da perícia antropológica na defesa criminal e no desencarceramento de pessoas indígenas
Autoria: Caroline Dias Hilgert
Autoria: Este trabalho busca analisar os desafios da perícia antropológica em processos de criminalização e/ou prisão de pessoas indígenas frente o advento das Resoluções nº 287, de 25/06/2019, e nº 454, de 22/04/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Contextualiza-se que o sistema de justiça criminal continua calcado no colonialismo, opera uma política assimilacionista corriqueiramente aplicando o superado critério integracionista para negar a identidade indígena e os direitos que dela decorrem. Isso decorre mesmo após a quebra da tutela orfanológica do Estado e as conquistas expressas na Constituição Federal de 1988, nos artigos 231 e 232, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, bem como, dos avanços dos conceitos antropológicos e reivindicações do movimento indígena. No âmbito judiciário criminal, a disputa argumentativa é latente, especialmente, sobre a dinâmica da cultura, a organização social, e autodeterminação dos povos indígenas, os atores judiciais em geral não assimilam tais conceitos para a compreensão da pessoa indígena acusada ou presa, porém, quando o fazem, através da utilização dos laudos antropológicos, nota-se efeitos inovadores no desfecho do caso. A nova Resolução 454/2022, do CNJ, recomenda expressamente que a perícia antropológica criminal não seja descartada com base em suposto grau de integração. Para além da perspectiva criminal, espera-se que, com essa resolução, os antropólogos sejam mais requisitados pelo Poder Judiciário para esclarecer contornos socioculturais como condição de garantia do acesso à justiça pelos povos indígenas. Por seu turno, a orientação dada pela Resolução 287/2019 tem sido acolhida em alguns processos criminais e em execuções penais, sendo inédita no campo criminal porque organiza legislações de direitos fundamentais da pessoa indígena acusada/presa e inaugura expressamente a possibilidade de realização de perícia antropológica para compreensão dos contornos socioculturais, em especial, sobre o entendimento da comunidade sobre os fatos e de formas próprias de resoluções de conflito. Frise-se que os dados sobre o encarceramento de pessoas indígenas no Brasil são subestimados, no entanto, segundo pesquisa via Lei de Acesso à Informação, realizada pelo Instituto das Irmãs da Santa Cruz e Conselho Indigenista Missionário, pelo menos 1038 pessoas indígenas estavam presas em 2021. No presente trabalho, a partir de dois casos concretos, analisarei as possibilidades e desafios da perícia antropológica em processos criminais e/ou de prisão envolvendo pessoas indígenas diante do discurso jurídico colonial criminalizante colonial vigente, visando contribuir com antropólogos requisitados pelo sistema criminal, com a autodeterminação dos povos e o desencarceramento.
"Justiça não é para nós": etnografia e possibilidades da pesquisa documental em confrontos entre punks e skinheads em Curitiba
Autoria: Tatiana de Oliveira
Autoria: "Tribunal de Justiça anula julgamento que condenou skinheads por morte de punk em Curitiba". A notícia de 08 de outubro de 2021 traz à tona uma questão que permeia o punk brasileiro desde o seu surgimento, em meados da década de 1980, e em Curitiba se faz presente cotidianamente entre uma parcela das pessoas que se reconhecem e são reconhecidas como punks. Em meu projeto de pesquisa contemplo, no âmbito da cultura punk, integrantes que se distinguem de outros principalmente em relação principalmente à classe. São os autointitulados punks das ruas, punks do subúrbio, punks maloqueiros, punks sujos ou punks de verdade. Tal distinção implica numa série de entendimentos e práticas que são alvo de críticas por parte dos comumente chamados punks de pub, punks burgueses, punks de final de semana, falsos punks ou apenas simpatizantes. Almejando qualificar minha inserção junto aos punks das ruas, realizei, em fase preliminar ao campo, pesquisa documental em processos judiciais e notícias veiculadas em diferentes meios de comunicação. Encontrei menções a ocorrências policiais, ações penais e episódios relatados que nem sempre chegaram a ser alvo de registro formal, desde 1986. Procurei ainda refletir sobre a influência das fontes documentais no campo e a própria ideia de trabalho de campo. Neste trabalho, após traçar uma breve contextualização do surgimento da cultura skinhead e sua relação com o punk, descrevo os confrontos a céu aberto que envolvem skinheads na cidade de Curitiba, de 1986 a 2005 e menciono outros, ocorridos após 2005. Descrevo ainda os percursos etnográficos que tornaram a pesquisa documental, antes compreendida como plano de fundo, à componente central na pesquisa. Finalmente, indico que a narrativa policial reforça o punk das ruas como corpo abjeto e, portanto como uma vida menos passível de luto - em sintonia com depoimentos de defesa de familiares ou dos próprios skinheads. As falas dos delegados negando a motivação racista dos homicídios, o descaso no pagamento de pensão para a mãe de um jovem assassinado, os famosos e caríssimos advogados de defesa dos skinheads, a demora dos julgamentos, a prescrição dos crimes, o ingresso de alguns skins no poder judiciário e no corpo policial e a vida empresarial bem sucedida de outros parecem operar na produção de verdades e discursos de modo que os punks sejam vistos como uma ameaça à paz e segurança de um sujeito adaptado ao sistema político e econômico.
Fluxos de Processos, Fluxos de Sentidos, Fluxos dos Sujeitos : A Produção do Inimputável Através de Movimentações Jurídicas e Psiquiátricas
Autoria: Victória Mello Fernandes
Autoria: O presente resumo refere-se a um recorte da pesquisa exploratória de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa tem como escopo de análise a produção do tipo social "louco-criminoso", o inimputável no cruzamento dos saberes jurídicos e psiquiátricos nos processos de execução criminal no estado do Rio Grande do Sul. A investigação qualitativa tem como metodologia e estratégia pesquisa a etnografia documental aliada ao estudo de caso, buscando compreender como as movimentações dentro do processo de execução criminal formam sentido, verdade jurídica sobre os sujeitos. Os processos de execução criminal, ao contrário dos processos dos presos imputáveis, estão em constante movimentação, especialmente no período da Pandemia da Covid-19, sendo o espaço-tempo de consulta das partes - defesa e acusação. Nesse sentido, processos, que atualmente fazem parte de um sistema virtual de acesso, são também a trajetória - escrita - jurídico psiquiátrica dos sujeitos. Aqueles que ainda correm, sujeitos que ainda vivem em manicômios-judiciários, são recorrentemente movimentados nesses sistemas de acessos. Nesse momento, traz-se análises preliminares sobre esses dados, fluxos rastreados através da imersão no campo, nos processos. Aponta-se para uma múltipla autoria na constituição desse tipo social, que não está circunscrita ao campo jurídico. Os sujeitos são inimputados de seus atos e tornam-se inimputáveis, por avaliação de um perito psiquiatra e pela decisão de um juiz de direito de uma Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas. Mas esse tornar-se inimputável, ser capturado por esses saberes, assim como outras sentenças, necessita de um processo de execução criminal, no qual múltiplos atores estão relacionando-se, mediando e mediados por tecnologias como papéis, computadores, doutrinas, manuais psiquiátricos, laudos, etc. Essa gama de atores é essencial para que os fluxos funcionem, para que as informações cheguem e partam, para que diligências e determinações sejam tomadas, para que o processo ocorra, a medida de segurança seja cumprida e o inimputável exista.
Do "dever ser" ao "ser": uma análise sociojurídica da audiência de conciliação na comarca de barbalha/ce
Autoria: Natália Viana Nogueira
Autoria: O presente estudo busca realizar uma análise do instrumento processual chamado "audiência de conciliação", previsto no ordenamento jurídico brasileiro e ainda mais evidenciado a partir do Código de Processo Civil. A partir dele, diversos debates sobre a melhor forma de manejo, implementação e institucionalização desse mecanismo foram intensificados, que pese a forte cultura brasileira de judicialização e litigiosidade dos conflitos (WATANABE, 2007). Não obstante, diversas compreensões se dispõem a observar esse instituto a partir de uma perspectiva apenas legalista. Abordagens que proporcionam questionamentos e discussões quanto ao "fazer judicial" em si, sendo realizadas pelos próprios membros do meio jurídico, ou seja, a ausência da aplicação de um caminho científico sociojurídico para compreensão desse recurso pode constituir uma falha limitadora quanto à perspectiva de identificação, implementação e melhoria. Por essa razão, objetiva-se, identificar, qual o desenho que o meio conciliatório da audiência ganha durante a sua realização através da perspectiva dos seus atores participantes. O Centro Judiciário de Resolução de Conflitos da comarca de Barbalha - CE servirá como campo para essa execução. É preciso, então, evidenciar as especificidades, individualidades e olhares que esses membros possuem sobre eles e sobre o próprio instrumento jurídico que estão se valendo, movimento que é indispensável para repensar esse fazer judicial a partir de uma óptica que considere não apenas o "dever ser", mas também o "ser". Buscar-se, ressaltar as trajetórias e experiências que fazem com o que cada agente desse ritual (SCHRITZMEYER, 2001) possua uma identidade e não seja referenciado apenas por um número processual (MAUSS, 2003). Nesse sentido, para além de uma explanação de como a conciliação é retratada por meio das obras jurídicas dogmáticas, também se valerá da compreensão sociojurídica do instituto processual. Diante da aplicação metodológica de uma observação participante será possível notar circunstâncias, atos e espaços que permeiam a sua realização e que não são identificados pelo primeiro caminho anteriormente apontado, que se funda, tão logo, apenas no "dever ser" (VASCONCELLOS; NUÑEZ, 2020). Esses pontos dialogam e interferem na construção e na forma de identificação da audiência frente aos seus interlocutores, evidenciando, para além de uma análise estritamente normativa, problemáticas e questões estruturais desse fazer. Através da observação participante (VALLADARES, 2007) e com a aplicação de entrevistas não-diretivas, se busca permear e vivenciar o espaço em que a audiência ocorre e ganha vida. Dentro dessa dinâmica, também pretende-se compreender quem são esses interlocutores, como eles interpretam esse recurso conciliatório.
PROCESSOS EM SEGREDO DE JUSTIÇA E AS BARREIRAS NO CAMPO ETNOGRÁFICO: reflexões sobre disputas no jogo das ações de alienação parental
Autoria: Glaucia Fernanda Oliveira Martins Batalha
Autoria: Este trabalho é fruto de inquietações surgidas durante a pesquisa de campo em meio a processos de alienação parental, objeto do trabalho de tese ainda em desenvolvimento. Na pesquisa antropológica quando o campo escolhido é o sistema de justiça invariavelmente o trabalho empírico recorrerá aos processos. É o caso dos processos de alienação parental onde os documentos envolvidos são tecnologias de produção de verdades e de categorização de indivíduos, pois objetiva identificar a figura do alienador que supostamente interferiria de forma promovida ou induzida "na formação psicológica da criança ou do adolescente para que repudie o genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este" (art. 2º da Lei 12.318/2010). Nesta perspectiva, nos interessa investigar se os documentos envolvidos nesses processos contribuem para a produção de sujeitos generificados por meio de disputas em torno da produção de verdades. Nos interessa analisar se o processo de alienação parental se desenha demarcando lugares sociais do gênero e contribuindo para a manutenção das relações de poder, da dominação do masculino sobre o feminino e do viés heteronormativo. Contudo, alguns entraves à nossa investigação etnográfica se apresentam de maneira enfática e desafiadora e vão além da desconfiança do judiciário quando a pesquisa se relaciona às questões de gênero. Dentre eles o fato dos documentos produzidos nesses processos serem permeados pelo segredo de justiça decorrente do direito à intimidade das famílias. Entretanto, cabe problematizar tal "confidenciabilidade" a partir da constatação de que as decisões judiciais tomadas em segunda instância - aquelas produzidas pelos desembargadores de forma monocrática ou colegiada - são publicizadas pelos bancos de dados dos Tribunais de Justiça, sendo preservado apenas os nomes dos menores em iniciais, mas os nomes dos demais membros da família são visíveis. Isto é, a instituição que "guarda" o segredo é a mesma que, paradoxalmente, expõe. Ademais, hoje os documentos jurídicos de primeira instância -aqueles produzidos nas varas de família- não são mais "arquivados" fisicamente, mas por meio do Processo Judicial Eletrônico- PJe, o que torna o acesso aos processos de alienação parental complexo e dependente de uma rede de vínculos prévios como credenciais de permissividade. Os pontos elencados, são alguns dos entraves encontrados nesse campo de estudo, que estão permeados de disputas de poder. Considerando que há poucos aportes na bibliografia clássica que versem sobre as possibilidades analíticas e metodológicos de etnografias com/dos documentos em segredo de justiça, entendemos que evidenciar as barreiras nas investigações antropológicas é uma forma de encontrar caminhos teórico-metodológicos alternativos.
Quem pode investigar e produzir verdades sobre as mortes decorrentes da intervenção policial? Conflitos de competência investigativa e letalidade policial racializada em Minas Gerais.
Autoria: Mayara Ferreira Mattos
Autoria: A polícia militar mineira considera a investigação das mortes praticadas por seus agentes contra civis como de sua competência, sendo as mesmas investigadas por meio de um IPM (Inquérito Policial Militar). Valendo-se dos Código Penal Militar (CPM) e Código de Processo Penal Militar (CPPM), a corporação instaura procedimentos investigativos próprios, até mesmo negando e dificultando os procedimentos investigativos operacionalizados pela Polícia Civil do estado, que fica condicionada às provas produzidas pela PMMG para produção do seu inquérito. Assim, essa disputa pela dimensão cartorial (produção burocrática da verdade e do registro) contraria tanto diretrizes internacionais quanto normativas e resoluções produzidas pelo Ministério Público de Minas Gerais que recomenda a investigação dos casos de letalidade policial por órgão ou entidade externa à qual pertencem os agentes envolvidos nos fatos. Esse conflito de competência gera uma "blindagem da polícia que mata" (FERREIRA, 2020), pois são os IPMs produzidos pela corporação que definem se o homicídio foi doloso ou culposo. Apenas os casos em que se constata o dolo seguirão para a Justiça Comum e talvez julgados pelo Tribunal do Júri. De acordo com a Nota Técnica 004/2014 elaborada pelo MPMG, a realização de investigações concomitantes e totalmente independentes por parte das polícias militar e civil gera prejuízo à apuração dos fatos e à coleta de provas. No relatório final "Letalidade e vitimização policial em Minas Gerais" produzidos pela Fundação João Pinheiro em cooperação técnica com o MPMG, foi sugerido que o IPM produzido tem por finalidade endossar a narrativa policial de legítima defesa por injusta agressão (excludente de ilicitude). Nesse sentido, a vida pregressa da vítima se sobrepõe a ação policial que ensejou a morte. Essa dimensão moral atravessa muitos agentes públicos envolvidos nesses processos e procedimentos, assim como parte da sociedade, orientada moralmente pela lógica racial do extermínio de sujeitos construídos historicamente como perigosos, violentos e indesejados, produzindo, consequentemente, sujeitos matáveis. Desse modo, o objetivo dessa proposta é refletir etnograficamente a partir de dispositivos legais e administrativos (tais como: leis, decretos, códigos penais, normativas e resoluções nacionais e internacionais) como esse conflito de competência "blinda" a PMMG em casos de jovens negros assassinados no Aglomerado da Serra/Belo Horizonte/MG. Para tal compreensão serão analisados dois casos ocorridos no território em questão, visando trazer ainda para o debate que apesar de não ser a polícia que mais mata no país, a PMMG produz uma matabilidade racial específica e singular definida por uma alta padronização jurídica dos seus atos e procedimentos.
Processos de vitimização em disputa: Analisando o lugar dos réus na judicialização da Violência contra a Mulher no Brasil
Autoria: Matilde Quiroga Castellano
Autoria: A partir do presente artigo pretende-se analisar os processos de vitimização que atravessam a judicialização da Violência de Gênero no contexto brasileiro. Esta proposta faz parte de reflexões mais amplas que estão sendo elaboradas durante a escrita da Tese de Doutorado em Antropologia Social da autora. Particularmente, o presente texto tem como objetivo analisar falas e narrativas dos réus e sua defesa, extraídas de processos de judicialização da violência contra a mulher. Trata-se principalmente de refletir em relação a como em busca da estabelecer uma verdade jurídica, esses sujeitos atravessam, vivenciam e disputam essa verdade movimentando o que se denomina processos de vitimização. O embasamento para tais reflexões está ancorado no trabalho de campo realizado durante o ano 2019, que foi contemplado pelo Projeto "Estudos da judicialização da "violência de gênero" e difusão de práticas alternativas numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina" (Chamada CNPq nº 22/2016), e que consistiu em etnografar mais de cem audiências que envolviam principalmente fatos tipificados na Lei Maria Da Penha (Lei 11.340/06) e na denominada Lei de Feminicídio (Lei 13.104/15), num Juizado Especial Criminal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em uma das áreas Metropolitanas de Santa Catarina, Brasil. A partir da presença em campo, participando e observando as audiências, foi possível identificar três eixos através dos quais os réus e aqueles que os defendem, disputam de maneira preponderante o lugar de vítima nos processos nos quais estão envolvidos. Assim, os três discursos principais que atravessam as falas dos réus e suas defesas se referem ao consumo problemático de substâncias, a questões ligadas à saúde mental do réu e, por último, situações em que a vítima aprece como alvo de críticas, situações principalmente baseadas em avaliações de papeis de gênero e códigos de honra. Estes discursos se misturam entre falas de réus que negam os fatos, seja parcial o totalmente, réus que os reinterpretam gerando novas versões e réus que admitem e se responsabilizam dos fatos que estão sendo denunciados. Nesse sentido, foi possível identificar momentos em que os réus no processo, através das arguições em sua defesa, podem pleitear o lugar de vítima, colocando em movimentação certas estratégias apresentadas frente a "agentes vitimadores", que convalidam ou não esses discursos que se desenvolvem numa "lógica do contraditório", própria do espaço jurídico local.
Adolescentes em conflito com a lei: sujeitos de quais direitos?
Autoria: Flávia de Freitas Cabral
Autoria: O objetivo deste ensaio é analisar a lacuna existente entre a legislação brasileira, que conferiu o status de sujeito de direito a todas as crianças e adolescentes com base na doutrina de proteção integral, e a fundamentação utilizada pelos operadores de justiça nos processos de apuração de atos infracionais que resultaram no decreto de privação de liberdade dos adolescentes. A argumentação terá como base os dados coletados em pesquisa na Vara Regional de Atos Infracionais da Infância e da Juventude - VRAIIJ do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em relação às apreensões em flagrante que resultaram na internação provisória de adolescentes pela prática de atos infracionais no ano de 2018. Os dados apontam que no ano de 2018, foram apreendidos em flagrante 3.291 adolescentes no Distrito Federal, sendo que 1.591 tiveram a internação provisória decretada, o que corresponde a 48,34% do total. Os dados da VRAIIJ apontam que no ano de 2018, as apreensões de adolescentes as quais culminaram na decretação de internação provisória pelos atos infracionais análogos aos crimes de roubo e de tráfico de drogas foram de 55% e 18,4%, respectivamente. Em contraponto, os atos infracionais análogos aos crimes de homicídio e latrocínio corresponderam apenas a 4,7% e 4,5%, respectivamente. Observa-se, portanto, que a maior parte dos atos infracionais cometidos por adolescentes é constituída por roubo e tráfico de drogas, delitos que, em tese, não atentam contra a vida e, portanto, não deveriam ensejar no decreto de medida gravosa como a restrição de liberdade. Apesar disso, o judiciário ainda adota a privação de liberdade como decisão majoritária na solução de conflitos de jovens infratores. O livre convencimento motivado do juiz no processo decisório relativo às internações provisórias dos adolescentes acusados pela prática de atos infracionais possibilita aos magistrados a aplicação de medidas mais gravosas pela prática de atos simples, sob os argumentos de "garantia de segurança pessoal" e "manutenção da ordem pública" (ECA, art. 174). Mesmo que os atos infracionais mais cometidos pelos adolescentes não envolvam uso de violência física ou grave ameaça à vida, a decretação de internação provisória tem se mostrado uma prática comum nas decisões proferidas após as apreensões. Isso resulta no encarceramento de jovens pobres e negros cada vez mais notório no país e nos remete ao período do antigo Código de Menores, nas vezes em que o judiciário se utiliza do mecanismo de privação de liberdade "em nome de sua proteção, não de sua responsabilização".
Linchamentos e processos de justiça no Amazonas
Autoria: KAROLLINE DE ANDRADE PORTO, Flávia Melo
Autoria: Buscando entender os linchamentos a partir de processos de justiça, procedimentos administrativos e de reportagens sobre o assunto, desenvolvemos pesquisa documental no Estado do Amazonas (Porto, 2021), com vistas a identificar as características de linchamentos, aqui considerados como vários fenômenos distintos entre si (Sinhoretto, 2002). Para isso, a partir de estudo de caso de um jovem negro, identificamos e descrevemos a relação entre racismo e práticas de linchamento, geralmente, desencadeados em regiões segregadas e marginalizadas, o perfil dos atores envolvidos no processo, fazendo uma descrição moral e física, assim como, a forma como são repercutidos nos meios de comunicação, com destaque a programas de televisão com temática policial, os quais costumam veicular prisões e imagens de pessoas envolvidas em crimes e ocorrências nas periferias, diversamente quando se trata de operações/prisões realizadas em bairros nobres da capital Manaus. Foram analisados dados qualitativos levantados e o caminho percorrido para obtê-los no Sistema Administrativo do Estado e em processos do Sistema e-Saj, do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, examinando-se os procedimentos e a construção dos acontecimentos pelos agentes de Estado. Conforme Mariza Corrêa (1983), os inquéritos policiais e termos circunstanciados de ocorrência gerados a partir dos registros (ou demais hipóteses do art. 5º, CPP) têm em si incorporados os fatos e extraídos deles uma versão. O procedimento "já é um afastamento (do fato) e uma interferência sobre ele na medida em que há uma ordenação pelos agentes policiais que selecionam quem estará presente, com direito a palavra, e o que deve ou não constar como prova nos autos" (idem, 1983, p. 35). E, identificado elevado índice de atos de linchamentos, verificamos uma racionalidade permeada por motivações de vingança privada, justiçamento imediato e moralidades estruturantes da comunidade envolvida, como o racismo, motivando, nesses casos, atos com maior violência. Posto isso, demonstrou-se a necessidade do exame do fenômeno e início do pensamento sobre alterações das relações de poder, sobretudo, na atuação das instituições oficiais.
A urgência da perícia antropológica na defesa criminal e no desencarceramento de pessoas indígenas
Autoria: Caroline Dias Hilgert
Autoria: Este trabalho busca analisar os desafios da perícia antropológica em processos de criminalização e/ou prisão de pessoas indígenas frente o advento das Resoluções nº 287, de 25/06/2019, e nº 454, de 22/04/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Contextualiza-se que o sistema de justiça criminal continua calcado no colonialismo, opera uma política assimilacionista corriqueiramente aplicando o superado critério integracionista para negar a identidade indígena e os direitos que dela decorrem. Isso decorre mesmo após a quebra da tutela orfanológica do Estado e as conquistas expressas na Constituição Federal de 1988, nos artigos 231 e 232, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, bem como, dos avanços dos conceitos antropológicos e reivindicações do movimento indígena. No âmbito judiciário criminal, a disputa argumentativa é latente, especialmente, sobre a dinâmica da cultura, a organização social, e autodeterminação dos povos indígenas, os atores judiciais em geral não assimilam tais conceitos para a compreensão da pessoa indígena acusada ou presa, porém, quando o fazem, através da utilização dos laudos antropológicos, nota-se efeitos inovadores no desfecho do caso. A nova Resolução 454/2022, do CNJ, recomenda expressamente que a perícia antropológica criminal não seja descartada com base em suposto grau de integração. Para além da perspectiva criminal, espera-se que, com essa resolução, os antropólogos sejam mais requisitados pelo Poder Judiciário para esclarecer contornos socioculturais como condição de garantia do acesso à justiça pelos povos indígenas. Por seu turno, a orientação dada pela Resolução 287/2019 tem sido acolhida em alguns processos criminais e em execuções penais, sendo inédita no campo criminal porque organiza legislações de direitos fundamentais da pessoa indígena acusada/presa e inaugura expressamente a possibilidade de realização de perícia antropológica para compreensão dos contornos socioculturais, em especial, sobre o entendimento da comunidade sobre os fatos e de formas próprias de resoluções de conflito. Frise-se que os dados sobre o encarceramento de pessoas indígenas no Brasil são subestimados, no entanto, segundo pesquisa via Lei de Acesso à Informação, realizada pelo Instituto das Irmãs da Santa Cruz e Conselho Indigenista Missionário, pelo menos 1038 pessoas indígenas estavam presas em 2021. No presente trabalho, a partir de dois casos concretos, analisarei as possibilidades e desafios da perícia antropológica em processos criminais e/ou de prisão envolvendo pessoas indígenas diante do discurso jurídico colonial criminalizante colonial vigente, visando contribuir com antropólogos requisitados pelo sistema criminal, com a autodeterminação dos povos e o desencarceramento.