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ISBN: 978-65-87289-23-6
MR34: Lugares, paisagens e territórios em disputa: negociações e rearranjos em situações de restrições, de perdas e de desastres

Coordenação: Ana Beatriz Vianna Mendes (UFMG)

Debatedor/a: Eliana Creado (UFES)
Participantes: Emmanuel Almada (UEMG), Rodrigo C. Bulamah (UNIFESP), Francisco Araos (Universidad de Los Lagos)

Resumo:
Lugares, paisagens e territórios são idealizados, planejados, nutridos, geridos e vividos por diferentes agentes com grandes diferenciais de poder, em processos transpassados por tomadas de decisões que se dão em diversas escalas e envolvendo diferentes práticas-e-conhecimentos. Os trabalhos apresentados nesta mesa visam tratar sobre como esses processos se desdobram no tempo e no espaço em situações que podem ser entendidas como perpassadas por restrições, perdas e/ou por desastres, buscando refletir sobre como são negociados direitos e existências (de humanos e não-humanos) em contextos constituídos por conflitos de interesses, de valores, de percepções, bem como por diferentes saberes. Com abordagens e metodologias diversas, serão tratadas dinâmicas relacionadas às disputas pela gestão de territórios marinhos no Chile (Francisco Araos); desastres ambientais e industriais e produção de outros mundos no Haiti (Rodrigo Bulamah); garimpo artesanal em áreas que foram atingidas por rompimento de barragens em Minas Gerais (Emmanuel Duarte Almada). Todos esses cenários nos permitem conhecer mecanismos de (re)construção da vida, no Brasil e no mundo, a partir de trabalhos etnográficos feitos por pesquisadores que atuaram de formas variadas em contextos específicos, e que nos permitem refletir crítica e conjuntamente sobre entrelaçamentos entre diferentes mundos e agenciamentos.

Palavras chave: Modos de vida; paisagens em disputa; (re)existência
Resumos submetidos
Paisagens de carbono: sobras, técnicas e afetos nas margens do capitalismo
Autoria: Rodrigo C. Bulamah
Autoria: O carvão vegetal representa a base do sistema energético haitiano. Calcula-se que 70% da demanda por energia no país é suprida por esse combustível, utilizado sobretudo em cozinhas urbanas e periurbanas. Sobre esse tema, predominam discussões que retratam a produção de carvão como irracional e responsável por um desmatamento supostamente descontrolado no país. A cadeia de carvão é, contudo, mediada por técnicas e afetos que envolvem processos vitais, diferentes regimes de propriedade e herança, cálculos econômicos e ecológicos além da agência de espíritos que habitam elementos da paisagem. A proposta desta apresentação é deslocar o nosso olhar sobre o carvão com o objetivo de trazer à vista outras dimensões da vida nos montes haitianos, particularmente o par regeneração e toxicidade. Para tanto, discutirei alguns elementos dessa cadeia produtiva, enfatizando a economia de sobras e excessos que resultam dessa atividade.
Os rejeitados do ouro: cosmopolíticas garimpeiras no Alto Rio Doce (MG)
Autoria: Emmanuel Almada
Autoria: O rompimento da Barragem de Fundão em 05 de novembro de 2015, liberando dezenas de milhões de toneladas de rejeitos tóxicos, provocou a destruição de comunidades e ecossistemas ao longo de toda a bacia do Rio Doce, de Bento Rodrigues, em Mariana até a Comunidade Quilombola de Degredo, na foz do rio, no Espirito Santo. Este desastre sociotécnico, teve como resposta a mobilização de diversos coletivos e comunidades em busca da reparação dos danos socioambientais e a garantia de direitos. Dentre estas, está a Comunidade dos Garimpeiros Tradicionais de Ouro do Alto Rio Doce, os quais estão, desde 2016, em um processo de autorreconhecimento como comunidade tradicional. Desde julho de 2018, tenho acompanhado as mobilizações e organização dos garimpeiros em suas lutas pela reparação e garantia de direitos, inicialmente como pesquisador, mas logo em seguida a investigação tornou-se também um processo de assessoria técnica, aos modos de uma "antropologia por demanda", me valendo da terminologia proposta por Rita Segato. Ao longo desse tempo, tenho me interessado pelas formas que a os garimpeiros tem mobilizado a categoria "comunidade tradicional" em um contexto de desastre e de conflito ambiental com a mineração industrial. Essa tarefa tornou-se ainda mais inquietante em um cenário de avanço do garimpo de fronteira na região amazônica, com graves ameaças a terras indígenas e outras comunidades tradicionais. Tanto eu como a comunidade garimpeira nos vimos em uma encruzilhada: como um grupo social marcado historicamente pela estigmatização social e (mais recentemente) ambiental pode habitar a categoria comunidade tradicional? À semelhança da apuração do ouro nas bateias, a comunidade garimpeira tem apurado direitos em meio aos rejeitos que marcam sua paisagem em ruínas. Por diferentes "frentes de trabalho", a comunidade tem buscado uma positivação de sua identidade, acionando elementos de ancestralidade, formas próprias de sociabilidade e complexos saberes ecológicos tradicionais associados à extração do ouro. Ao mesmo tempo, destacam o claro recorte de classe e raça associado à rejeição do garimpo tradicional na região. Uma indagação frente acionada nos atos e manifestações da comunidade é "Se a Vale/Samarco/BHP podem minerar, porque os garimpeiros tradicionais não podem garimpar?". Há aí uma clara oposição entre modos comunitários de acesso ao ouro e a privatização e destruição dos territórios pelo capital organizado da mineração industrial. Tal conflito remonta ao período colonial, momento que os garimpeiros já emergem como "desclassificados do ouro" e agora novamente rejeitados, em duplo sentido. A cosmopolítica garimpeira nos convida a caminhar pelos rejeitos do Capitaloceno, atentos à diversidade de tons dourados que habitam a bateia da tradicionalidade.
O ressurgimento dos comuns no Antropoceno Azul no Chile
Autoria: Francisco Araos
Autoria: As disputas e tensões para controlar o acesso e uso dos bens comuns do mar no Chile são antigas. A resolução de conflitos tem passado geralmente pela construção de arranjos institucionais que organizam o acesso e uso dos comuns através de sistemas jurídicos e/ou normas costumeiras. No Chile, o regime de exploração dos recursos marinhos funciona desde a década de 1970 por meio da privatização através do sistema de concessões marítimas, que tem sustentado o crescimento da indústria da maricultura. Apesar da riqueza produzida pelos oceanos, o modelo de mercantilização do mar gerou uma crise ambiental sem precedentes e um aumento significativo da injustiça social. Esse cenário socioambiental dos oceanos faz parte de um amplo processo de transformação planetária, que é conhecido como Antropoceno, entendido como a era geológica em que o ser humano se tornou o principal agente modelador do sistema terrestre. Há múltiplas evidências desse processo nos oceanos: sobrepesca, diminuição drástica da biodiversidade marinha, extinção de espécies, aumento do nitrogênio, concentração de micro plásticos e outros poluentes. Muitas delas presentes na zona marino-costeira do Chile. Todas as visões sobre o Antropoceno coincidem em reconhecer o papel do ser humano na transformação do planeta, embora algumas especifiquem os responsáveis, relativizando a noção de que a humanidade, no singular, é a causa de todo mal. Assim, a ênfase tem sido colocada nas relações e agenciamentos entre humanos e outros-que-humanos na evolução dos processos vitais diante da incerteza das paisagens danificadas ou arruinadas. Essa perspectiva ontológica e relacional do Antropoceno nos convida a observar as interações e associações que compõem o mundo criado na evolução conjunta dos seres que habitam o planeta e, consequentemente, atentar para os arranjos socioambientais e as derivações políticas que expressam essas ontologias em movimento. Diante desse cenário de crise ambiental e desapropriação do mar, comunidades litorâneas, pescadores e pescadoras, povos indígenas, organizações locais e cidadãos em geral, tanto local quanto globalmente, têm promovido exercícios micro-políticos de recuperação dos bens comuns e regeneração da vida nos oceanos. O objetivo destes exercícios tem sido a recuperação de bens e espaços naturais como: peixes, algas, espécies ameaçadas e emblemáticas, áreas de biodiversidade, áreas de ocupação humana, bem como bens imateriais: saberes, práticas, identidades, entidades sagradas. Propomos que esses exercícios micro-políticos se expressam por meio de diversas formas de cuidado entre humanos e outros-que-humanos, num processo de composição que toma a forma de agenciamentos que derivam em arranjos institucionais emergentes e/ou na reelaboração dos já estabelecidos. Precisamente, esses valores orientam os comportamentos e ações coletivas de proteção/responsabilidade do meio ambiente.