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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT10: Antropologia das Mobilidades

André Dumans Guedes, Candice Vidal e Souza

Este grupo de trabalho pretende abrigar e pôr em relação pesquisas que tenham as mobilidades como objeto etnográfico. É nossa pretensão dialogar com trabalhos que abordem as formas, significados, experiências, narrativas e práticas de mobilidade em contextos os mais diversos: nas grandes metrópoles ou nas roças, nas matas ou águas, em aldeias ou instituições modernas, nas estradas e caminhos conectando ou localizando-se "entre" lugares como esses. Buscaremos assim aproximar trabalhos oriundos de distintos subcampos da antropologia: a etnologia indígena; a antropologia urbana ou feita nas cidades; os estudos do campesinato e dos povos e comunidades tradicionais; a antropologia da economia, da política, do estado ou da ciência. Inspirados por certas abordagens pioneiras surgidas nos estudos sobre o campesinato brasileiro, iremos privilegiar investigações onde a análise dessas múltiplas formas e modalidades de movimento esteja orientada pelas reflexões, linguagens e formas expressivas de que se servem aqueles (ou aquilo) que se encontra em movimento. Sugerimos igualmente que os trabalhos apresentados contemplem questões referentes à articulação das mobilidades com a organização de coletivos, identidades e institucionalidades; às desigualdades nas capacidades diferenciais dos sujeitos de se mover (ou não se mover) decorrentes de diferenças de classe, gênero, geração, etnia ou filiação religiosa; ou às inovações e problemas metodológicos associados ao estudo das mobilidades.

Palavras chave: Mobilidades; Movimentos; Antropologia
Resumos submetidos
Uma visita nunca é só uma visita: hospitalidade, movimento e sociabilidade em uma Comunidade Quilombola
Autoria: Daniella Santos Alves
Autoria: Esse texto é parte da minha tese de doutorado ainda em andamento, feita a partir de uma imersão etnográfica - presencial e remota - dentro de uma Comunidade Quilombola, localizada no Estado do Tocantins, a partir do ano de 2019. Os dados aqui apresentados são frutos de entrevistas semiestruturadas, observação participante e as anotações do diário de campo. O objetivo do trabalho é o de entender a dinâmica do movimento nas/das visitas entre os moradores e as pessoas de fora que circulam no quilombo. Viso mostrar tanto as conversas e os gestos que acontecem no espaço das casas, entre quem recebe e quem é recebido, mas também no espaço de caminho, no percurso daquele que desloca de um lugar ao outro. O interesse por investigar esse movimento se dá pelo destaque que a receptividade - o receber bem - tem para o grupo, e isso acontece por ao menos duas razões: a) honrar a ancestralidade da finada Vó Antônia que ensinou sempre a tratar bem e a dar o último; b) por entenderem que receber bem não só aproxima os distantes, mas permite vigiar e controlar o perigo especialmente de quem vem de fora. Logo, destratar alguém significa se não desonrar a Vó Antônia e ficar com a fama de pessoa ruim, mas também de uma vulnerabilidade diante dos interesses daqueles que ali adentram e dos que já circulam. Esse movimento que envolve afeto, controle e perigo se constrói no fluxo de pessoas nas/das residências, permitindo como mostrou (COMERFORD, 2003, 2014; CARNEIRO, 2010; DAINESE, 2011; 2016) toda uma sociabilidade dada pelas narrativas, vigilâncias e julgamentos feitos sobretudo no ato de visitar. Na Malhadinha, essa mobilidade se estende e se retrai em várias categorias com diferentes significados: visitar, ir ali, dar um recado, fazer bestagem, fazer a ronda, entrar e sair na casa de fulano ou fazer uma visitinha rápida. Pode ser feito a pé, de carro ou de moto; rápido ou devagar; com ou sem propósito; para vizinhar, pedir voto, por amizade ou alguma rusga, por brigas e/ou fuxicos. Busco mostrar a composição, o significado e a articulação dessas e outras categorias a partir das observações e narrativas de três figuras centrais: uma que pouco sai, mas se movimenta ao receber muitas pessoas, outra que pouco fica, muito anda e muito sabe ao fazer a sua ronda; e por fim de uma liderança da comunidade que ao mesmo tempo que recebe muitas pessoas precisa transitar para visitar os moradores e entender as suas demandas. É possível concluir que muito embora a receptividade seja um lugar comum às famílias quilombolas, ela se faz de distintas maneiras e é construída através dos julgamentos morais sobre o modo como o outro não só recebe, mas sobre como ele pensa e age ao circular e ao receber, mostrando que na Malhadinha uma visita nunca é só uma visita.
O mal que vem de longe: cidade, mobilidade e alteridade Wassu-Cocal
Autoria: Evaldo Mendes da Silva
Autoria: O objetivo deste trabalho é debater a relação entre territórios indígenas e espaços urbanos. O foco principal são as relações de grupos familiares Wassu-Cocal com a cidade e o modo como interpretam suas experiências de morar em áreas urbanas. A Terra Indígena Wassu-Cocal se localiza na Zona da Mata do estado de Alagoas, possui 2.758 e conta com aproximadamente 2.234 habitantes (IBGE, 2010). A história dos índios Wassu-Cocal, bem como de boa parte dos grupos indígenas no nordeste brasileiro, tem sido marcada por diversos processos de "mistura" e de "territorialização" vivenciados nos contextos colonial e pós-colonial brasileiro (Oliveira, 1998). Até meados do século XIX, os Wassu-Cocal ocupavam uma área de aproximadamente 57 mil hectares (Beltrão, 1980; Antunes (1984). No entanto, ao longo deste período aquelas terras foram sistematicamente invadidas e usurpadas por usineiros de tal forma que, em meados década de 1980, restavam apenas pequenas áreas de ocupação cercadas por extensos canaviais. Em 1985, um estudo proposto pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) avaliou que cerca de 70% da população Wassu-Cocal havia migrado para áreas urbanas e que somente 400 moradores permaneciam vivendo em pequenos lotes de terras (Mendes, 1985). Em 1991, após a demarcação e a pacificação dos conflitos, diversas famílias que viviam em áreas urbanas iniciaram um movimento de retorno à Terra Indígena. São famílias que viveram por anos ou décadas em pequenas cidades vizinhas, na capital, Maceió (que fica a aproximadamente 80 km de distância) e em grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. De modo geral, os "parentes de fora", como são chamados aqueles que vêm da cidade, são bem acolhidos por seus grupos familiares locais passando a viver em um dos quinze núcleos populacionais que compõem o aldeamento. A partir destas experiências vividas na cidade, pretende-se aqui oferecer perspectivas etnográficas que se distanciem da visão integralista que pressupõem que a vida na cidade "apaga" ou "dissolve" os marcadores de diferença e de alteridade indígenas. O trânsito entre a cidade e a aldeia é parte da vida cotidiana dos Wassu-Cocal e o objetivo deste trabalho é trazer à reflexão estas experiências que, aos nossos olhos, podem parecer modos de socialização incompatíveis. Dentro desta perspectiva, a "cidade" como um espaço físico e social será um elemento chave para compreendermos como os Wassu se relacionam e dão sentido a estes fluxos e movimentos.
"Aqui é uma estação de trem": fazendo a vida a partir das casas de santo
Autoria: Daniele Ferreira
Autoria: Para definir o funcionamento de uma casa de santo, um dos meus interlocutores a comparou com uma estação de trem, referindo-se ao vai e vem de pessoas, seus conflitos e necessidades diárias. O trem como meio de transporte das massas trabalhadoras traz a dimensão vital da mobilidade. Uma estação é um lugar de encontro e despedida; de circulação não só de pessoas, mas de uma série de elementos imprescindíveis à vida. A figura do trem também remete ao aspecto onírico do sonho, da busca por uma vida melhor, dos projetos de futuro. O objetivo do trabalho é refletir sobre a configuração dos terreiros afro-brasileiros do Rio de Janeiro como lugares a partir dos quais pessoas e divindades fazem a vida. Os terreiros, também chamados casas de santo, equivalem aos templos religiosos dos cultos de matriz africana e ao local de moradia de divindades e de pessoas, sendo locais onde os integrantes da família de santo podem viver de forma permanente ou transitória. Ao longo da história republicana do Rio de Janeiro, o processo de re-territorialização dos terreiros acompanhou os fluxos de ocupação urbana da cidade pelas populações mais vulneráveis. As casas de santo que se concentravam nas áreas centrais tenderam a se dispersar em direção às regiões mais afastadas, seguindo a expansão das linhas férreas no subúrbio e na Baixada. Os membros das famílias de santo habitam as casas de candomblé de forma sazonal, de acordo com o calendário das obrigações rituais, períodos chamados de funções. Nessas ocasiões, as pessoas ficam "em função dos orixás", convivendo ao longo de vários dias para alimentá-los com oferendas sacrificiais e realizar suas cerimonias públicas. O calendário litúrgico relaciona o culto das divindades a determinadas épocas do ano. Porém, os terreiros estão voltados para a realização de muitas outras atividades de cunho econômico, social e recreativo, configurando cronogramas paralelos. Existe uma série de movimentações entre os habitantes dos terreiros. Pessoas são acolhidas em situações de crise ou recolhidas para cumprir preceitos; orixás são feitos (nascem) pelas mãos dos sacerdotes e se manifestam nas cerimônias; entidades chegam para dar recados e tratar das pessoas; clientes buscam e pagam por serviços espirituais; amigos e visitantes colaboram e participam de festas e eventos socioculturais; trabalhadores atuam na manutenção e nas obras de edificação e reforma. Logo, a casa de santo é um lugar estratégico a partir do qual se pode conseguir alimento, abrigo e proteção em momentos difíceis; apoio psicológico e tratamento de enfermidades; ajudas em formas de dinheiro, de cuidados e de trabalhos; contatos profissionais; prestígio entre a comunidade; pertencimento identitário e familiar; projetar a vida e construir suas próprias casas.
Mulheres entre regras e redes: o entra e sai do jumbo nas unidades prisionais de Guarulhos
Autoria: Anna Clara Pereira Soares, Aymê Brito Mendes de Oliveira, Gabriella Cordeiro Costa Ferreira, Diana Maria Barros Pestana
Autoria: Como se dá o "entra e sai" e as relações estabelecidas ao redor do "jumbo" nas penitenciárias masculinas de Guarulhos? Com essa pergunta em mente buscamos compreender as circulações do jumbo, caixa de papelão ou bolsa transparente com itens alimentícios, de higiene pessoal, roupas, medicamentos, cigarros, produtos de limpeza e papelaria, que são regulados e estabelecidos previamente, por meio de listas disponibilizadas no site da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), repassadas em grupos de WhatsApp ou em dias de visita e enviados por mulheres familiares de pessoas presas, previamente cadastradas nas unidades prisionais. O objeto é fundamental para a existência da prisão e para a manutenção de suas lógicas socioeconômicas internas de funcionamento. Nosso foco é demonstrar as teias de relações, de reestruturações e conflitos que têm que ocorrer do "lado de fora" para que o jumbo fique pronto. Realizamos durante a pesquisa cinco entrevistas semiestruturadas, nossas interlocutoras são familiares de algum homem em situação de cárcere que enviam ou enviaram jumbos para unidades prisionais de Guarulhos entre 2019 e 2021. Entramos em contato com as nossas interlocutoras por meio do Grupo de Whatsapp dos CDPs de Guarulhos, em que uma integrante da pesquisa fazia parte. As entrevistas ocorreram todas de forma online, por meio do google meet, por ligação ou audios de Whatsapp. Além disso, acompanhamos os fluxos de informações e conversas nos grupos de WhatsApp e de Facebook, a produção de vídeos no tiktok e YouTube e manifestações artísticas culturais, como músicas e documentários sobre o objeto. Ao longo do trabalho buscamos demonstrar as relações e tensões envolvidas no processo de montagem e envio do jumbo. Identificamos que a presença da prisão modifica a rotina e tem impactos sobre a renda, a relação da mulher com a família, com a pessoa privada de liberdade e com as outras mulheres familiares de pessoas privadas de liberdade. A partir das análises das entrevistas concluímos que: i) o poder que a prisão exerce está vinculado ao controle da mobilidade e imobilidade das coisas, informações e corpos (tanto das mulheres, quanto da pessoa privada de liberdade); ii) as mulheres criam outros canais para que o fluxo de informações e coisas corram mais livremente entre elas, sem o controle da prisão; iii) montar e enviar o jumbo é um trabalho reprodutivo feito pelas mulheres que mostra como a presença da prisão atravessa os muros institucionais e entra dentro da casa dessas mulheres; iv) ter ou não ter o jumbo modifica profundamente a experiência de quem está em situação de cárcere; v) a montagem do jumbo é por vezes justificada pelo "não-abandono" do familiar, objetivando demonstrar o afeto e o cuidado com o parente que está preso.
Mulheres habitando a estrada: etnografando formas de permanecer e se deslocar nas rotas da América do Sul
Autoria: Ester Corrêa
Autoria: Este trabalho segue a trilha do tema dos deslocamentos e mobilidades das mulheres viajantes de mochila. Habitar a estrada é (re)inventar mundos. Os deslocamentos por entre as fronteiras e estradas latino-americanas, tem sido parte de uma invenção cultural com distintos sentidos, formas e movimentos. Nesses movimentos, cruzamentos de rotas e de fronteiras, as mulheres ocupam distintas posições em termos de nacionalidade, idade, classe, raça, dentre outros marcadores, o que pluraliza a experiência da viagem. Nesse sentido, este artigo pretende dar conta, por uma perspectiva feminista, de permear as singularidades e pluralidades dos deslocamentos e tem como objetivo atravessar as experiências de movimentos e de permanências de mulheres viajantes sul-americanas, destacando as estratégias e agências que impulsionam as viagens de mochila, registrando as práticas e os significados das experiências de trânsito e pouso. O artigo é parte de uma pesquisa etnográfica que está se construindo metodologicamente, no âmbito do curso de doutorado, por meio de incursões a campo nas estradas de diferentes países sul americanos no ano de 2019, e no Brasil, no ano de 2022 - assim como incursões virtuais no Instagram. Caracteriza-se como uma etnografia viajante que adotou o deslocamento como método principal de observação e de promoção de encontros no sentido de obter narrativas de experiências sobre e durante os trajetos. Dentre os vários aspectos que revelam sobre as formas de deslocamentos e permanências das mulheres viajantes, é possível destacar que a experiência espacial, o ato de chegar e sair de um lugar é feito por meio de uma conexão, como disse Doreen Massey, de uma associação às histórias das quais o lugar é feito. Os achados da pesquisa dão conta de que, as práticas e as formas de mobilidades que envolvem a experiência de se movimentar entre histórias-lugares das interlocutoras da pesquisa, são trajetos combinados de ônibus, caronas em caminhões e carros, caminhadas, voos. As rodoviárias, postos de combustíveis, entroncamentos, tornam-se lugares de negociações dos embarques, que levam os fluxos entre países/cidades/ruralidades onde as permanências são propiciadas pelos pousos em distintos espaços. Na dimensão do encontro, é nos campings, mocós, alojamientos, hostel, hospedagem solidária acontece um fluxo e uma fricção entre ideias, imagens e pessoas de diferentes lugares do mundo. Todo esse movimento complexo entre meios de transporte e meios pousar produz significado espaço-temporal que faz das experiências das viajantes um importante dispositivo para refletir sobre os sentidos das viagens das mulheres. Palavras-chaves: Mulheres viajantes; mochila; deslocamentos; América Latina.
Entre Uruguai, Brasil e Espanha: a expansão da Umbanda a partir da trajetória de um sacerdote
Autoria: Lorran Lima
Autoria: Crenças e práticas religiosas acompanham o deslocamento humano, seja internamente, em território nacional ou em contexto transnacional. Partindo dessa afirmação e considerando o trabalho de pesquisa que venho realizando, a presente comunicação tem como objetivo refletir sobre a experiência de mobilidade vivida por um sacerdote afro-religioso e a dinâmica de transnacionalização da Umbanda que acompanha o sacerdote em seu percurso. Pai Walter Egea teve o primeiro contato com religiões afro-brasileiras no Uruguai, seu país de origem. Posteriormente, esteve por dez anos no Brasil, onde estabeleceu contatos religiosos e atualmente reside em Madrid (Espanha), onde fundou e dirige um terreiro, inclusive reconhecido pela Federação Brasileira de Umbanda. O sacerdote realiza celebrações de Umbanda, Quimbanda e Nação Gêge-Ijexá. Sua comunidade religiosa é composta por membros de diferentes nacionalidades. A pesquisa vem sendo construída a partir do trabalho etnográfico, revisão bibliográfica sobre o tema, entrevistas, análise da trajetória religiosa do sacerdote e práticas ritualísticas. A ideia é pensar sobre o movimento de pessoas e de formas de religiosidade, na medida em que o deslocamento de sujeitos possibilita o fluxo e expansão de práticas religiosas, transformações e ressignificação do mundo da cultura.
Paisagens e circuitos em Mérida, México
Autoria: Marcos H. B. Ferreira
Autoria: Este trabalho é fruto de uma tese defendida no PPGAS/UFG em 2021, com base em uma etnografia realizada em Mérida, capital do estado mexicano de Yucatán, entre janeiro de 2018 e março de 2019. Partindo da noção de "taskscape", de Tim Ingold, que trata as paisagens como registros de práticas sociais cotidianas; e da noção de "circuito", de Magnani, que designa um uso do espaço urbano por meio de encontros, comunicação e sociabilidade, penso a produção das fronteiras urbanas e a forma como elas se relacionam com a questão da etnicidade. Meu foco é sobre as práticas cotidianas de morar, trabalhar e mover-se na cidade, e os significados que o racismo em relação aos mayas produziu em torno destas práticas ao longo de séculos de exploração e exclusão. Meu objetivo é compreender como o racismo influencia a produção do espaço urbano de Mérida, produzindo diferentes "padrões de segregação" (CALDEIRA, 2011). E compreender a maneira como os mayas lidam com isso, tanto no que se refere aos significados construídos diante da segregação, quanto no que se refere às mobilizações identitárias produzidas em diferentes momentos da história.
Cativeiros, Correrias, Velocidades. Algumas Concepções Nativas sobre a "Liberdade" na Descrição de Mobilidades
Autoria: André Dumans Guedes, Ana Raquel Rosa do Couto
Autoria: Este trabalho considera, numa chave comparativa, dois universos sociais onde a questão da mobilidade se coloca de forma crucial. Num caso, levamos em conta os impasses, dramas e dilemas vivenciados por pessoas atingidas por barragens reunidas num movimento social. No outro, tratamos das experiências de trabalho de mulheres motofretistas entregadoras de comida. Numa situação como na outra, essa centralidade da mobilidade se expressa através de linguagens e gramáticas onde abundam termos associáveis às ideias de movimento e daquilo que o dificulta, atrasa, barra ou obstaculiza. Tomando tais formas de expressão como objetos de análise etnográfica, estamos interessados aqui em pensar como, de modo mais específico, veiculam-se aí diferentes concepções do que é "liberdade" - ou daquilo que é pensado como o contrário dessa "liberdade". Ideia central na cosmologia e na filosofia política ocidental, a "liberdade" vem sendo objeto de investimentos etnográficos que assinalam não apenas a multiplicidade dos seus sentidos possíveis como tal abertura semântica vincula-se a uma diversidade de práticas criativas e de resistência. Inspirados sobretudo pelas análises de Anna Tsing, mostraremos aqui como esse investimento direcionado às concepções de liberdade revela-se uma entrada privilegiada para pensarmos as formas, significados, transformações e variações das mobilidades e movimentos.
"Os agiotas ficam sempre por aí": algumas considerações sobre a "dinheiro na rua" da prática de agiotagem popular na cidade de São Paulo
Autoria: Fernanda de Gobbi
Autoria: O presente trabalho se inscreve na literatura emergente que analisa as transações informais-ilegais que compõem mercados legais e ilegais, em diferentes escalas, debate que vem sendo construído contemporaneamente no Brasil. A proposta aprofunda analiticamente uma pesquisa etnográfica sobre a prática de agiotagem popular na cidade de São Paulo, e tem como proposta central discutir as histórias das dívidas e conectar biografias, trajetórias e os caminhos do dinheiro em diferentes escalas. Nessa pesquisa, a história das dívidas em andamento é minha unidade analítica. Em torno desse histórico, estudo a circulação do dinheiro entre os agiotas e as redes de proteção, mobilização de recursos e de clientes. O trabalho de campo está sendo desenvolvido considerando especialmente a observação dos laços sociais pelos quais se movimentam recursos reais (Granovetter, 1973; Marques, 2003) e possibilitam as transações que viabilizam a prática de agiotagem popular. Considero a prática de agiotagem popular não apenas como uma relação de crédito, mas como uma relação de acumulação de capital moral, na qual confiança, honra e reputação entre os agiotas e suas redes são essenciais, dada uma constante avaliação econômica e moral (Zelizer, 2011). Nesse sentido, proteção, mobilização de recursos e indicação não são artifícios demandados apenas pelo agiota ou pelos outros membros da rede, mas são relações de dupla-troca, não necessariamente lineares e planejadas, e sim "relações sociais de circulação" (Urry, 2007: 197). Assim, o dinheiro que circula da casa do vizinho à casa do traficante de drogas, do salão de beleza ao desmanche de carros, viabiliza a construção e manutenção das redes do agiota. Trato aqui dos conceitos de rede (Castells, 1999) e circulação (Appadurai, 1986) enquanto chaves interpretativas que consideram que as relações estabelecidas dentro das redes são relações não verticalizadas e que não obedecem a um único comando ou a uma hierarquia (Freire-Medeiros e Lages, 2020). Desse modo, pode-se dizer que a circulação do agiota entre as redes e na cidade, constrói teias que amparam relações baseadas interesses mútuos que viabilizam as alianças e produzem reciprocidades. APPADURAI, Arjun (org.). The Social Life of Things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. GRANOVETTER, Mark S. extend access to American Journal of Sociology. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, 1973. MARQUES, Eduardo César. Redes sociais, instituições e atores políticos no governo da cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2003. URRY, John. Mobilities. Cambridge: Polity Press, 2007. ZELIZER, Viviana. Economic lives: how culture shapes the economy. Princeton: Princeton University Press, 2011.
Casa e mobilidade em São Luís do Maranhão: uma abordagem antropológica
Autoria: Martina Ahlert, Nicole Pinheiro Bezerra
Autoria: Desde 2016 acompanhamos alguns moradores do Centro Histórico de São Luís, capital do Maranhão, em seus engajamentos relacionados à luta por moradia. Enfatizamos, especialmente, três bairros - a Praia Grande, o Desterro e o Portinho, locais de atuação da União de Moradores da região. Esse perímetro corresponde, em grande parte, à área de tombamento federal, reconhecida, em 1997, pela UNESCO, como Patrimônio Cultural Mundial. Na pesquisa conhecemos concepções e práticas relacionadas à casa; experiências em torno da moradia em uma área regrada por normativas diversas dado seu caráter de patrimônio; e formas de socialidade e ajuda mútua. Além disso, percebemos como a casa e a mobilidade, antes do que representativas de polos opostos (estabilidade e movimento) são articuladas no cotidiano das pessoas que vivem no Centro Histórico. Casa e mobilidade aparecem nas "observações" realizadas pelos moradores para saber qual casarão ocupar, haja vista a presença de famílias em edifícios históricos de proprietários desconhecidos ou ausentes. Surgem nas práticas de trabalho com a venda de comidas e bebidas, feitas nas ruas e praças. Se colocam nas constantes trocas de local de residência, movimento que se relaciona com o trabalho, o parentesco e a melhoria das condições de habitação. E podem ser pensadas em contraposição às normativas que regem o patrimônio, uma vez que os casarões se alteram com o tempo, tornando-se ruínas ou ainda sendo transformados pela circulação de objetos que, reinventados em novos espaços, passam a compor velhas/novas casas. No trabalho aqui proposto nos interessa mostrar que obliterar a associação entre casa e mobilidade reforça argumentos expressos por políticos locais sobre o "vazio" do Centro e a necessidade de "repovoá-lo". Sugerimos que, nessa forma de conceber o espaço há uma dificuldade em perceber o movimento das pessoas como constituinte da sua relação com os bairros. A despeito do reconhecimento da casa como escopo da luta política dos moradores, parece operar, por parte do Estado, uma lógica de controle da mobilidade e da experiência da moradia. Nas palavras de uma das nossas interlocutoras, "se dá casa, mas não liberdade". Desta maneira, exploramos a ambiguidade presente na disposição protocolar de promover a habitação social e, ao mesmo tempo, não perceber parte dos atuais ocupantes do Centro (e suas práticas) como moradores legítimos do local. Para finalizar, buscamos analisar a forma como os nossos interlocutores respondem ao Estado. Apesar de haver diversos serviços governamentais nos bairros estudados e de existir uma constante interação de alguns dos nossos interlocutores com os funcionários estatais, o que eles narram, reiteradamente, é a sua ausência.
Daniel e os "esquemas": ilegalismos e transporte complementar de passageiros no subúrbio do Rio de Janeiro
Autoria: Eduardo de Oliveira Rodrigues
Autoria: As cidades por todo o mundo possuem diferentes tempos que são articulados na construção do seu cotidiano. Essa dialética entre velocidade e lentidão pode ser percebida por vários caminhos, entre eles a observação atenta dos seus modais de transporte. Eles permitem a operação de diferentes regimes de circulação de pessoas e mercadorias, e que, no caso de uma cidade como o Rio de Janeiro, não podem ser compreendidos sem a contribuição das vans e kombis para o seu sistema de transporte. Esses modais complementares reproduzem ainda mais claramente a dialética entre velocidade e lentidão, sobretudo por um elemento que conforma uma diferença: a conjugação de uma série de ilegalismos na sua operacionalização. Neste sentido, o presente paper objetiva compreender as táticas que possibilitam o enredamento de um "esquema" de transporte complementar no subúrbio do Rio de Janeiro - região da capital fluminense que abarca dezenas de bairros distantes geograficamente e simbolicamente do "centro" da metrópole e das suas vizinhanças turísticas mais abastadas. Busco descrever a operação deste mercado encravado nas fronteiras do legal/extralegal como forma de pensar os diferentes tempos que conformam os ilegalismos atravessadores da relação de Daniel (um motorista de van que objetiva ser policial militar) com a cidade. Tal exercício permite iluminar algumas dimensões do mercado de transporte complementar carioca do ponto de vista de um possível futuro "polícia" que já experencia um cotidiano laboral marcado pela precariedade e violência. Este texto apresenta parte dos resultados da minha tese de doutorado, construída sobre trabalho de campo etnográfico realizado no ambiente de um "cursinho preparatório" para o próximo concurso da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Meus interlocutores não são "recrutas" já matriculados nas escolas de formação da polícia, mas sim simples jovens de 18 a 32 anos que objetivam, por vários motivos, entrar para a PMERJ. Ao longo de quinze meses ininterruptos (nove presenciais e seis "à distância"), procurei compreender as motivações que levam esses jovens a quererem seguir tal profissão antes de qualquer contato formal com a corporação militar. Sendo assim, a estrutura do texto procura delinear um recorte analítico mais enxuto desta problemática, trazendo os interesses na carreira policial sob a perspectiva de um motorista de van. A narrativa se desenvolve por meio do acompanhamento de uma tarde na van de Daniel, quando fui designado seu "cobrador de passagens" dentro do trajeto percorrido por ele diariamente no âmbito do seu trabalho.
Linhas travestis: deslocamentos além das redes
Autoria: André Rocha Rodrigues
Autoria: As travestis que estão inseridas nos mercados do sexo demonstram existir uma íntima relação entre a atuação nestes mercados e deslocamento territorial. Situado na discussão sobre o vínculo entre mobilidades e travestis e baseado no conhecimento produzido pelas travestis, apresento os mecanismos de construção das relações que possibilitam os deslocamentos. Destaco que "fazer a linha" e "sair doida" são metáforas de movimento criadas pelas travestis que ajudam a perceber o deslocamento como relação e como sentido. A autonomia destas metáforas comporta diálogos, aproximações e distanciamentos de outros conhecimentos, como o conceito de rede desenvolvido por Barnes (1987) e as reflexões sobre linhas, o fazer a vida e a malha de Tim Ingold (2007; 2012; 2015).
Entre ativismos, projetos e caminhadas: primeiros passos de uma etnografia com os agrupamentos de mobilidade a pé em São Paulo.
Autoria: Douglas Delgado
Autoria: A presente pesquisa se propõe a investigar os agrupamentos de mobilidade a pé em São Paulo, de maneira a apreender a cidade e suas relações a partir de seus pontos de vista. Estes agrupamentos surgem no contexto das Jornadas de Junho de 2013, e se fortalecem nos últimos anos, a partir da execução projetos que geram visibilidade e da conquista de espaço em instâncias de participação social. Estão inseridos num movimento contemporâneo de ativismos urbanos, que têm lutado por mudanças concretas nos usos regulares do espaço público. Ainda em estágio inicial, a pesquisa tem sido conduzida por meio da observação participante com a associação Cidadeapé, que desde de 2015 tem pautado políticas públicas para mobilidade a pé no Conselho Municipal de Trânsito e Transportes (CMTT) da Prefeitura da Cidade de São Paulo. A partir da constatação de que os agrupamentos vinculados a este movimento se propõe a tornar a cidade mais favorável para a mobilidade ativa e sustentável, meu problema inicial se concentra em compreender como a Cidadeapé mobiliza relações, práticas e discursos para promover a mobilidade a pé.