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ISBN: 978-65-87289-23-6
SE03. 100 anos de Argonautas do Pacífico Ocidental: considerações sobre o trabalho de campo pós-malinowskiano

Coordenação: Edilene Coffaci de Lima

Sessão 1
Participante(s): 
Levi Marques Pereira (UFGD), Mariana Ciavatta Pantoja Franco (UFAC), Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo (INRua)
Debatedor(a): Edilene Coffaci de Lima (UFPR)

Sessão 2
Participante(s): 
Edilene Coffaci de Lima (UFPR), Sonia Regina Lourenço (UFMT), Taisa Lewitzki (UFRN)
Debatedor(a): Levi Marques Pereira (UFGD)

Resumo:
Argonautas do Pacífico Ocidental, consagrada como a obra que inaugurou a antropologia moderna, completa 100 anos. As lições de Bronislaw Malinowski, sobretudo suas recomendações para a boa realização do trabalho de campo, são apresentadas em sua célebre introdução, leitura obrigatória em cursos introdutórios, e ecoam ainda hoje. Lá o autor preconizava a necessidade imperativa de longas temporadas em campo, domínio da língua nativa e anotações cotidianas sistemáticas, a elaboração do famoso diário de campo, entre outros tantos protocolos. Sem que seja preciso dar atenção ao fato de que a publicação de seu diário pessoal, em 1967, pôs por terra essa imagem romântica do trabalhador de campo solitário e incansável, muito mudou nesse primeiro século que agora se celebra: seja porque o mundo foi descolonizado; seja porque, em algumas situações, os nativos, de quaisquer partes, passaram a duvidar de nossos compromissos, de nossa ética; seja porque, outras vezes, nativos e pesquisadores tornaram-se parceiros e/ou amigos e alinharam-se em busca de objetivos comuns (demarcação de terras, apoio à educação escolar, ao atendimento à saúde, elaboração de livros e de projetos com objetivos variados, denúncias de arbitrariedades cometidas por toda parte e tantas outras demandas tornaram-se corriqueiras). A implicação no campo guiou e guia ativismos antropológicos, além da própria etnografia, a partir da qual se estabeleceu. Pretende-se com esse Simpósio Especial justamente debater sobre as transformações do trabalho de campo, que se mantém prevalecente na definição da identidade dos profissionais de nossa disciplina.

Resumos submetidos
O campo na floresta, o campo nos arquivos: aproximações
Autoria: Edilene Coffaci de Lima
Autoria: Para além do fato óbvio de que a realização do trabalho de campo feito em meio às pessoas e em meio aos documentos (digitalizados ou não) têm diferenças absolutas, procuro explorar nessa comunicação, a partir da Etnologia Indígena, justamente a relatividade de tais diferenças, dado que, em qualquer das alternativas, estive bastante implicada com os povos estudados. Para tratar da primeira alternativa - o campo em meio às pessoas - recupero rapidamente minha experiência de campo, na virada do século passado, entre os Katukina (atuais Noke Kuin, povo de língua pano), localizados no Acre, e bastante impactados pela pavimentação da rodovia BR-364 durante meus estudos pós-graduados. Fato que acabou resultando na minha colaboração para que, naquele momento, medidas compensatórias fossem estabelecidas ao grupo em virtude dos danos socioambientais causados pela obra. Na segundo alternativa - o campo em meio aos arquivos (uma possibilidade não vislumbrada por B. Malinowski e outros antropólogos de seu tempo) - dedico-me a abordar minha pesquisa atual entre os inúmeros documentos, distribuídos entre diferentes museus em Curitiba (PR), sobre o contato dos Xetá, no noroeste do Paraná, na metade do século passado - pesquisa que foi iniciada em virtude de um convite que recebi do Ministério Público Estadual do Paraná e que é resultado da minha colaboração na Comissão Estadual da Verdade - Teresa Urban. Portanto, em um contexto que se insere nos processos da chamada Justiça de Transição. A partir de ambas as alternativas, sem desconsiderar suas particularidades e profundas diferenças, busco refletir sobre como estive implicada nas pesquisas e como tais implicações não apenas "fazem parte", mas chegam a ponto de definir o alcance e mesmo a qualidade dos registros etnográficos.
Transformações na prática etnográfica a partir uso de mídias e de interação com indígenas pesquisadores
Autoria: Levi Marques Pereira
Autoria: Chamado de Copérnico da Antropologia, Malinowski trouxe, em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, não apenas a proposta de um método inovador sobre como realizar a pesquisa etnográfica, mas também todo um ideário sobre a realização do trabalho de campo, por muito tempo considerado como ritual de iniciação do antropólogo. Passados 100 anos desde sua primeira publicação, o livro continua sendo lido e discutido com proveito nos cursos de antropologia, mas o ideal romântico do trabalho de campo, como momento de afastamento e ruptura radical do pesquisador com seu próprio sistema cultural está cada vez mais improvável de se realizar nos múltiplos cenários onde se realizam as pesquisas atuais. A contribuição proposta para esse Seminário busca refletir sobre as transformações na prática etnográfica, tomando como referência pesquisas realizadas entre os Kaiowá e Guarani no MS. O advento da Pandemia de COVID 19 intensificou o uso das mídias, ampliando também as possibilidades de uso desses recursos na prática etnográfica. Em cada terra indígena no MS, a exemplo do que acontece em outras regiões, existem inúmeros grupos de whatsapp reunindo e conectando evangélicos, jovens, professores, organizações indígenas, agentes de saúde, grupos de amigos, famílias extensas, etc. Do mesmo modo, acessam com avidez outras formas de mídia, como o Facebook. Os temas discutidos vão desde assuntos de interesse público e geral dos indígenas, como, por exemplo, o Marco Temporal, até temas de interesse mais restrito das famílias ou comunidades, como acusações de feitiçaria, traições matrimoniais, etc. Boa parte da comunicação nas terras indígenas passa hoje pela mídia, e mesmo as pessoas mais idosas são atualizadas pelos mais jovens sobre o que está sendo discutido. Pesquisadores que realizam suas investigações nessas comunidades, mesmo estando em outros estados ou países, podem interagir com pessoas das comunidades através destes recursos. Outro evento importante na transformação do modo de se fazer pesquisa foi a entrada de pesquisadores indígenas na pós-graduação stricto sensu. Só nos programas da UFGD são mais de 30 atualmente, em diversos programas. Isto coloca situações inteiramente novas, como os pós-graduandos e os professores dos programas se virem na contingência de compartilharem esses espaços com os indígenas, o que não raro gera certos constrangimentos, mas instaura um rico processo de reflexão e oportunidades de trocas de percepções e, mesmo de estabelecimento de colaboração na realização de trabalho de campo, ou em escritas compartilhadas.
Em campo, em sala: ideias a partir de uma licenciatura indígena
Autoria: Mariana Ciavatta Pantoja
Autoria: Pretende-se nesta comunicação explorar a situação em que a sala de aula torna-se trabalho de campo para uma docente não indígena ao encontrar-se com discentes indígenas que, por sua vez, vão a campo justamente por nele viverem. A referência empírica é o curso de Licenciatura Indígena da UFAC, em Cruzeiro do Sul, no Acre, onde atuo desde 2017. Os discentes participam em sua formação de disciplinas que buscam interagir com suas realidades de vida nas comunidades em que vivem, e que propõem ao mesmo tempo o olhar distanciado do pesquisador, mas também culturalmente pleno de sentido ou familiar para quem é membro da comunidade indígena. A interculturalidade, pretendida e almejada, concretiza-se na prática das relações estabelecidas em sala de aula e nas apropriações que docente e discente fazem de conceitos e teorias que trazem para a conversa. Pesquisas são realizadas, trabalhos "escritos" em linguagens várias. A docente-antropóloga conhece a realidade indígena por intermédio dos/das discentes, ela não vai pessoalmente a campo. São os discentes-pesquisadores indígenas que em estando fisicamente no campo, vão a campo; instauram seu campo de pesquisa, a conduzem e "escrevem" sobre a realidade pesquisada. À pesquisadora-docente a realidade lhe é apresentada, num contexto acadêmico, por aqueles que, lá vivendo, realizam pesquisas e as traduzem nos formatos aceitos, sob sua orientação. Pretende-se explorar este trânsito entre lugares e olhares, entre conceitos e (mais) conceitos; as relações, interações e tensões produzidas em sala de aula e no fazer acadêmico
Encontros, riscos e agenciamentos afro-quilombolas em Mato Grosso
Autoria: Sonia Regina Lourenço
Autoria: A comunicação busca apresentar uma reflexão sobre os encontros e experiências etnográficas com os coletivos quilombolas localizados em Chapada dos Guimarães, no estado de Mato Grosso. No processo de identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas, os coletivos afro-quilombolas e a antropóloga, engajaram-se em encontros, diálogos, assembleias, audiências públicas e a redação de documentos dirigidos às instituições tais como Ibama, Iphan, Incra e MPF, denunciando desmatamentos das geopolíticas do agronegócio e a destruição de sítio arqueológicos em seus territórios, ou ainda, em fóruns que visaram reivindicar ações afirmativas para estudantes quilombolas no ensino superior. São encontros que buscaram, sobretudo, a produção de conhecimento objetivados em relatórios antropológicos para a identificação e demarcação de territórios, marcados por situações de riscos, responsabilidades e tensões em que a dúvida do ofício antropológico e o poder das instituições se fez presente, particularmente quando delas se duvidou do alcance e da efetividade de seus propósitos. Se todo encontro é o lugar da criação, do equívoco ou de uma certa equivocação intelectual, então, a experiência etnográfica assume não apenas a responsabilidade diante do outro com quem estabelecemos alianças, mas compromissos éticos e políticos diante de quem escrevemos. Não se trata de designar uma experiência extramuros ou engajada, mas uma antropologia implicada com a vida. Os riscos e as tensões fazem implodir a ideia canônica da observação participante que marca o trabalho de campo ou uma certa de ideia de distanciamento e objetividade da ciência antropológico que sabemos é sempre relativa, parcial e situada. Levar a sério o comprometimento com as experiências afro-quilombolas é fazer uma antropologia da vida e reencontrar as conexões e disjunções que criam aberturas para espaços relacionais que possam provocar a imaginação antropológica, reestabelecer alianças e dar vazão às intensidades por meio das quais a diferença opera como agenciamento coletivo insurgente. As cosmopolíticas afro-quilombolas atuam como forças políticas de resistência diante do confinamento e do racismo institucional, agenciando tanto a antropologia e desafiando as práticas estatais.
"Espero que você não faça seu trabalho e suma": reflexões sobre pesquisa e engajamento militante em contextos de luta por direitos
Autoria: Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo
Autoria: É de praxe que pesquisadores sejam incitados a escrutinar suas trajetórias pessoais e as condições práticas do trabalho de campo. As assimetrias políticas e os locais de inscrição dos "outros" não é exatamente uma novidade se considerarmos que parte da tradição antropológica brasileira foi forjada no comprometimento com coletividades a quem os pesquisadores se dedicaram em seus trabalhos. Esta comunicação pretende questionar as forças e constrangimentos que, contraditoriamente, parecem fazer da participação política e do engajamento um tipo de "perigo de contaminação", em contextos políticos nos quais há uma demanda assertiva na defesa de direitos. Tratar-se-á deste contexto em que demandas por engajamento solapam tais "ficções de neutralidade", quando coletivos "pesquisados" estabelecem relações complexas e multifacetadas, em que a posição do pesquisador frente às questões concernentes aos grupos determina a relação de pesquisa. Tal reflexão estará ancorada em minha experiência durante o trabalho de campo realizado entre os anos de 2009 e 2017 com militantes do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e do que pude refletir a partir dos desafios que me apresentavam em suas avaliações do papel de pesquisadores e apoiadores em torno de sua agenda política e suas críticas que me ofereceram um mapa sobre como me posicionar nesse campo de disputas. O que se percebeu, portanto, é que na medida em que discursos em nome da população de rua se tornam mais requisitados por estudantes de diversas áreas de conhecimento, os militantes passam também a nutrir opiniões cada vez mais embasadas em suas experiências enquanto "interlocutores de pesquisas". Parte desta experiência resultou em ressentimentos e na elaboração crítica acerca da prática dos pesquisadores e do papel da Universidade como um todo. Por fim, frente a oportuna celebração de 100 anos desde a publicação de Argonautas do Pacífico Ocidental, pretende-se refletir como esta "antropologia feita em casa", não pode ser tímida ou omissa com relação às tensas disputas entre concidadãos que se sentam na mesma mesa e são confrontados em suas conclusões, desafiados em seus interesses e comprometimentos, que cada vez mais não se pode restringir ao interesse acadêmico, relevância científica, aprovação de pares ou mesmo do tempo de uma pesquisa acadêmica.