Check
ISBN: 978-65-87289-23-6
GT22: As Festas na pandemia de Covid-19

Hugo Menezes Neto, Luciana Chianca

A COVID-19 abalou profundamente o calendário cíclico das festas populares tradicionais. Porém, contrapondo-se ao caos e à desordem pandêmicas, a festa respondeu com a concretude de processos rituais particulares, mobilizando também sentidos cosmológicos amplos do viver coletivo. Desde a preparação à realização das festas, a pandemia afetou as mobilizações, congraçamentos e encontros, pois independentemente da sua dimensão, todas foram atingidas pelo medo, inseguranças e perdas de vidas. Alterando o trânsito festivo pelos espaços e territórios, a COVID-19 interferiu no turismo e na economia de muitas cidades - pois as festas também envolvem trabalho, emprego e o sustento de muitas pessoas, famílias e grupos. Este GT pretende reunir pesquisas que abordem como as festas tradicionais da cultura popular contemporânea - carnaval, semana santa, festejos juninos, celebrações do Divino, festas de santo, romarias, procissões e cantorias, entre outras - têm enfrentado a suspensão da presença física tão determinante na experiência ritual. Queremos debater as adversidades, a adaptação e a capacidade de resiliência das festas (e festeiros) nesse período excepcional que impediu a ocupação dos espaços característicos de sua preparação e celebração, apontando, ao mesmo tempo, para uma propulsão criativa, como, por exemplo, nas mobilizações virtuais. Em "tempos de cólera", como a experiência festiva se reconfigura através de novas práticas, dinâmicas e ordenamentos?

Palavras chave: festas; pandemia; cultura popular
Resumos submetidos
A Festa do Rosário de Catalão durante a pandemia: etnografia entre o distanciamento social e o digital
Autoria: Mara Ribeiro
Autoria: A pandemia de Covid-19, entre tantas alterações na vida, suspendeu atividades culturais, econômicas, religiosas e outras dimensões, colocando o distanciamento social na ordem do dia. Em consequência, aglomerações foram proibidas. Esse é o contexto mundial-local refletido e reflexivo do trabalho desenvolvido entre os congadeiros de Catalão, no sudoeste de Goiás, nos anos de 2020 e 2021. A presente comunicação trata das problemáticas do fazer etnográfico diante da crise pandêmica, da criatividade e das reinvenções na/da congada de Catalão e na Festa do Rosário. A Festa em Louvor à Nossa Senhora do Rosário existe oficialmente em Catalão há 146 anos. Até 2019 era uma das maiores festas de congada do Brasil, mobilizando altas cifras na economia local e regional através do turismo religioso, cultural e de consumo, ocupando a cidade com corpos em movimento, com comércio itinerante, com batuques e ritmos, danças, "tradições" e "folclore". É uma dinâmica cultural-religiosa que extrapola os dez dias da Festa em outubro e se constitui essencialmente de aglomerações. As imposições colocadas pela pandemia restringiram formas essenciais da expressão congadeira e forçou reinvenções para que não faltassem os elementos centrais e a Festa do Rosário foi realizada da forma que pôde: rituais religiosos fixos (missas e terços) com restrição de pessoas presentes e transmitidos através das redes sociais; rituais "folclórico-religiosos" móveis (que demandam passagem pelas ruas) imprescindíveis foram adaptados para que o distanciamento social fosse respeitado, através de carreatas. Houve, portanto, inovações e aprofundamento de tendências locais e gerais, em construção e vivência mútua e situada, como a "plataformização" da vida social (mais geral) e as carreatas como expressão coletiva (mais local). Noções como "tradição" e "folclore" são acionadas com certa diversidade de sentido pelos(as) congadeiros(as), tanto como formas de explicar a constituição da congada e como as adaptações possíveis na pandemia, indicando a capacidade do tradicional em absorver a novidade sem deixar de sê-lo. Esta comunicação reflete, além da mobilização desses conceitos de forma situada, lançando mão da historiografia local e da memória dos(as) congadeiros(as), o próprio fazer etnográfico em contexto de crise e necessidade de distanciamento social. Nesse sentido, a etnografia digital aportou para o trabalho de campo - que apesar de não ser enquadrado exclusivamente nessa "modalidade", foi - realizado em larga medida através das mídias digitais, assim como para as reflexões sobre a utilização dessas mídias como forma de manter a coletividade e obrigatoriedade dos rituais cíclicos, percebidos como elementos centrais essenciais da congada.
Os sentidos da Festa de São Benedito em Ituiutaba/MG: criatividade, resistências e estratégias na pandemia
Autoria: Amanda Moura Souto
Autoria: As práticas congadeiras estão relacionadas aos grupos que realizam festejos em devoção a santos e santas católicos/as e não católicos/as, como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, utilizando-se de danças, cantos, toque de instrumentos, bandeiras e outros objetos e performances para afirmarem seu comprometimento festivo e devocional. Neste trabalho, busco apresentar as estratégias e ações realizadas pela Irmandade de São Benedito em Ituiutaba/MG para não permitir que o festejo dedicado a São Benedito "passasse em branco", visto que a pandemia da Covid-19 interrompeu um ciclo festivo que acontecia desde 1951 na cidade. Nesse sentido, procuro analisar e acompanhar as adaptações e a criatividade ritual, mediante a imposição do isolamento social, em que as práticas congadeiras sofreram alterações em suas formas de execução. Enfatizo que realizar o registro etnográfico deste período ressalta a maneira como esses/as praticantes compreenderam a ruptura do tempo festivo-ritual e como elaboraram estratégias para que, de alguma maneira, houvesse a continuidade da "tradição congadeira" na cidade de Ituiutaba/MG.
A resiliência cultural do Dia dos Mortos no México em tempos de narco-violência, pandemia, e guerra colonial
Autoria: Olof Kjell Oscar Ohlson
Autoria: Esta apresentação analisa a resiliência cultural da famosa festa religiosa do México, o Dia dos Mortos, que ocorre anualmente em 1º e 2 de novembro, no que no resto do mundo católico é conhecido como "Dia de Todos os Santos" e "Finados", em tempos extremos. A festa comunitária é celebrada com oferendas de comida oferecidas em altares lindamente decorados em todo o México, mas com diferenças importantes dependendo do local e da etnia, pois diz-se que as almas dos falecidos retornam nessas noites e dias para ficar perto dos seus parentes. Os altares são feitos em casas, em espaços públicos e em cemitérios. A celebração do Dia dos Mortos ganhou destaque no México durante um período de genocídio e guerra colonial brutal contra a população local. Essas comunidades insistiam em tornar seus mortos mais visíveis na esfera pública no exato momento em que as elites procuravam esconder a destruição. Como tal, o Dia dos Mortos é, desde a sua própria concepção, tanto um ritual de rebelião que responde à gestão estatal da morte quanto uma ilustração da resiliência cultural, pois as relações sociais das classes populares foram mantidas na vida póstuma e receberam um papel de destaque na comunidade. Ao longo dos anos, a festa desenvolveu um humor político sombrio e mórbido, que muitas vezes zomba dos poderosos. Nas últimas duas décadas, muitos altares públicos sustentam o que chamo de "vidas póstumas políticas" das muitas vítimas de violência do país, criticando a gestão estatal da guerra do narcotráfico em curso. San Andrés Mixquic, uma comunidade Nahua descendente asteca e um dos principais pontos turísticos do país localizada ao sul da Cidade do Mexico, possui um grande programa público realizado durante vários dias para celebrar o retorno dos mortos. Na celebração, o cemitério local é especialmente importante, pois é onde fazem uma vigília conhecida como "la Alumbrada" com milhares de velas iluminando os caminhos para que as almas voltem para sentir o aroma dos alimentos presentes. As comunidades Nahuas também celebram um terceiro dia, conhecido como o "dia dos que morreram por acidentes ou assassinatos." A gestão do atual governo do COVID-19 tem sido controversa e a celebração deste ano, quando as festividades públicas retornam, pode ser uma saída para mostrar a frustração da população. No geral, a festa ilustra como o calendário ritual local pode ajudar a lidar com as vidas perdidas na pandemia. O Dia dos Mortos é uma comemoração feliz que exemplifica a reciprocidade intergeracional de cuidado e a continuidade do amor ao longo das gerações.
Um Folia por Whatsapp
Autoria: Caetano Pires Tossulino
Autoria: O presente trabalho é fruto de minha pesquisa e trabalho de campo (remoto) realizados durante a pandemia de coronavírus, anos de 2020 e 2021, e busca acompanhar e analisar as mudanças ocorridas na sociabilidade das populações caiçaras e na organização e realização da Folia do Divino Espírito Santo da llha dos Valadares em decorrência da COVID-19. A partir da análise da Folia, e da percepção da importância da corporificação do Santo e das trocas realizadas através da intermediação da pessoa do alferes, busquei compreender quais implicações a "ausência do corpo" (imposta pela pandemia) trouxe para esta prática religiosa. As populações caiçaras do litoral do Paraná vêm passando por transformações em seu modo de vida desde o século XX, e nesse contexto, é identificada dois âmbitos construídos historicamente na região, o rural (mencionado como sítio e composto pelas atuais comunidades que residem no entorno e interior do Parque Nacional do Superagui), e o urbano (a cidade de Paranaguá), compreendendo a Ilha dos Valadares (ambiente peri-urbano, próximo à cidade de Paranaguá) um dos ambientes de intermediação e conexão entre esses diversos espaços e tempos. Desse modo, a Folia do Divino Espírito Santo da Ilha dos Valadares se insere nessa relação entre sítio/cidade, ao sair da Ilha e percorrer os antigos sítios. Nessa relação as práticas culturais próprias assumem importância para a constituição tanto da identidade dessa população como da noção sobre seu próprio território. Noções essas que, como pude notar, vão orientar a realização da Folia por meio virtual, sendo possível identificar um modo próprio pelo qual as populações caiçaras se utilizaram da internet, dos aparelhos móveis e das redes sociais para manter suas relações (principalmente de parentesco), trânsitos e trocas, durante a pandemia. Neste trabalho apresento o problemas enfrentados para a realização de tal Folia através do aplicativo de mensagens Whatsapp, e as alternativas desenvolvidas pelos próprios foliões para contorná-los, alternativas essas que, como mostro, cruzam as fronteiras das dualidades que percorrem o universo caiçara no século XXI, tais como sítio/cidade, online/offline, real/virtual, humano/natureza.
Na pandemia tem carnaval? Notas etnográficas sobre festas e a ocupação dos espaços públicos na Cidade Baixa
Autoria: Joanna Munhoz Sevaio
Autoria: O coração da vida boêmia de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, historicamente fica no bairro Cidade Baixa. Lá foi o nascedouro do samba e do carnaval porto-alegrenses, sendo para isso fundamental a influência da população negra que habitava a região e que foi, ao longo do século XX, gradualmente sendo expulsa para lugares menos centrais da cidade. Foi lá também onde realizei o trabalho de campo de minha dissertação, uma etnografia sobre as práticas e sociabilidades dos jovens que frequentam o bairro e sobre controvérsias envolvendo os moradores incomodados com sua presença nas ruas. O carnaval de 2020 foi catalisador de uma série discussões sobre o direito a ocupar os espaços públicos para a realização de festas e encontros, havendo inclusive repressão policial para controlar os foliões. Os defensores da realização do carnaval de rua no bairro reivindicavam sua tradição carnavalesca, enquanto parte dos moradores, ancorados no poder público, buscavam controlar e dispersar a festa. Logo depois, a chegada da pandemia mudou drasticamente o cotidiano na Cidade Baixa, com bares, casas noturnas e restaurantes fechados, sendo a segurança sanitária um elemento a mais nas controvérsias que envolvem a vida noturna. Neste trabalho, meu objetivo é discutir sobre os fluxos e arranjos da vida noturna do bairro a partir da pandemia de COVID-19, considerando os diferentes momentos e medidas de restrição e, sobretudo, as saídas de alguns blocos de carnaval em 2022, a despeito da decisão estatal de proibir aglomerações no período. O carnaval de rua, nesse caso, aparece como maneira de praticar a Cidade Baixa e também como reivindicação de ocupação dos espaços públicos.
"Vamos rezar para que chegue ao final do ano completo": notas sobre movimentos de morte e vida na Festa de Nossa Senhora do Rosário do Quilombo de Pinhões
Autoria: Lúnia Costa Dias
Autoria: A frase entre aspas que dá abertura ao título desta proposta de comunicação, foi proferida por uma amiga, interlocutora de pesquisa, quilombola de Pinhões (Santa Luzia/MG), em conversa por telefone em 2020, quando do falecimento de seu tio - ancião mais antigo do Quilombo. Ela se remetia à completude das famílias lamentando as perdas insistentes. Não tardou muito, alguns meses adiante, o anúncio do falecimento de um "compadre" de seu tio e no ano seguinte seu pai, "dançante mais antigo da Guarda de Catopé da Irmandade de N. Senhora do Rosário de Pinhões". Escuto da filha do compadre, também em conversa telefônica, que "os dois estão juntos rindo até lá da situação aqui embaixo, falando do padre e vendo o modo da festa. Este ano não vai ter festa, vai ser diferente". Noutra conversa, agora em 2021, também em circunstância de um falecimento, novamente a "festa" e "as risadas" alinhavam encontros entre os que se foram: "agora ela tá lá, juntinha com Doralice, rindo até, cuidando da coroa da promessa, que era função de Doralice né?" É sabido que a pandemia da covid-19 alargou vertiginosamente as desigualdades e acelerou a marcha dos arranjos racistas que sustentam o capitalismo e suas alianças com o Estado e, consequentemente com as políticas públicas (GOMES, 2020). Em 2020 a "festa aconteceu diferente", teve reza do terço em grupos pequenos, a novena foi transmitida online, teve carreata com a imagem de N. S. R. e "a guarda de catopé dançou na igreja com poucas pessoas, nem foi divulgado". Mas não se pode dizer que teve festa, "os festeiros não tiveram oportunidade, então ano que vem são eles de novo". Pretendemos, nesta comunicação, a partir de uma revisita às conversas telefônicas (2020, 2021) e de algumas visitas presenciais pontuais (2021, 2022) realizar um primeiro exercício de aproximação dos modos como a festa de N.S.R. de Pinhões, mobiliza encontros e afetos entre arranjos de morte e vida, almejando assim a produção de registros e alguma compreensão das propulsões criativas e de resiliência constitutivas das festas no Quilombo evocadas na condição da pandemia de covid-19.
Nos tempos da COVID-19: análise dos rearranjos das romarias ao Padre Cícero do Juazeiro do Norte durante o período de isolamento social
Autoria: Renata Marinho Paz, Yslia Batista Alencar
Autoria: Engendradas em fins do século XIX, as romarias a Juazeiro do Norte-CE atraem, a cada ano, milhares de pessoas que afluem à localidade a fim de realimentar a sua fé e a sua devoção ao Padre Cícero e à Mãe das Dores. Secas, crises econômicas, epidemias, nenhum desses eventos constituiu-se em obstáculo para o fiel que considera Juazeiro uma terra santa, espaço onde se rende graças, e se obtém refrigério e salvação. A romaria possui um caráter central na experiência religiosa do devoto, devendo ser realizada, idealmente, pelo menos uma vez por ano. Entretanto, o cenário pandêmico fez com que essa relação tão crucial fosse diretamente afetada devido à suspensão da realização das romarias. Diante deste quadro atípico, entre os meses de setembro de 2020 e março de 2021 desenvolvemos uma pesquisa com o objetivo de analisar as reconfigurações construídas em torno do universo das romarias ao Padre Cícero. Para tanto, acompanhamos grupos de romeiros no Facebook e Whatsapp, buscando verificar e analisar as publicações referentes às romarias de Juazeiro veiculadas nesses espaços durante o período assinalado. De maneira associada, a partir de contatos estabelecidos nessas redes, realizamos entrevistas de forma síncrona e assíncrona a fim de obter informações acerca dos impactos provocados pela COVID - 19 em suas vidas, em seus cotidianos, em suas formas de expressão de piedade e práticas religiosas, sobretudo aquelas vinculadas aos exercícios devocionais relacionados, direta ou indiretamente, às romarias. Também acompanhamos as atividades institucionais realizadas pela Igreja Católica de Juazeiro, especificamente através da Basílica de Nossa Senhora das Dores, em seus canais oficiais na internet. Considerando esses elementos, neste trabalho daremos ênfase a dois aspectos: 1) aos rearranjos encetados tanto por parte dos devotos quanto da Igreja Católica no sentido de enfrentar o período de isolamento social; e 2) às percepções dos agentes sobre o processo constante de recriação das romarias, agudizado neste cenário pandêmico, e que apontam para a ressignificação de práticas devocionais por parte dos devotos do "Padim Ciço", ao passo que mobilizam e concatenam suas percepções individuais sobre a pandemia e o discurso institucional da Igreja. Nesse sentido, se destacam as celebrações diárias, as romarias virtuais e as lives, que permitiram aos romeiros vivenciar de outro modo as romarias fazendo com que, nos dizeres da Igreja, o santo Juazeiro fosse transportado aos lares dos devotos, transformando cada casa em uma extensão da Igreja.