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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT60: Patrimônio, conflitos e ressignificações

Euler David de Siqueira, Álvaro Banducci

A crescente demanda por registros de bens de natureza imaterial, efeito de mudanças na concepção de patrimônio advinda da adoção de noções mais abrangentes de cultura, assim como da influência de fatores externos, como o turismo e o consumo, chocam-se com circunstâncias divergentes, reforçando a importância e a urgência de reflexões no campo da patrimonialização. De um lado, assiste-se à valorização de identidades, saberes e fazeres expressos sob a forma de culturas e de memórias. De outro, o reconhecimento dessas demandas acontece em meio a diálogos tensos e conflituosos, seja com agentes do mercado, do turismo e do Estado, mas também decorrente do embate decolonial, que tende a confrontar as narrativas da patrimonialização, fazendo aflorar outros protagonismos e significados acerca de bens e práticas patrimoniais. Este GT busca reunir reflexões que abordem experiências dessa natureza, que valorizem o diálogo e as disputas advindos de processos de patrimonialização de caráter imaterial. Nesse sentido, abre-se espaço para discutir o patrimônio imaterial, expresso nos modos de fazer, nos saberes tradicionais e populares, nas manifestações festivas, celebrações e rituais, a partir de sua dinâmica interna e da lógica de seus detentores e no diálogo com agentes externos, que atuam no sentido de valorizar ou de promover interferências simbólicas e desestabilizadoras nos domínios do popular, induzindo novas destinações e usos daquilo que foi ou está em vias de ser patrimonializado.

Palavras chave: Patrimônio imaterial; conflito; festas
Resumos submetidos
Disputas Narrativas em torno
Autoria: Paulo da Costa Pereira Neto
Autoria: Baseado em pesquisa de campo levada a cabo entre fevereiro e junho de 2013, meu objetivo é apresentar um panorama das disputas narrativas que giravam em torno dos significados históricos e políticos do Fuerte de Samaipata, patrimônio material localizado nas terras baixas bolivianas e que, em 1998, foi reconhecido pela UNESCO. O lugar foi palco da presença de culturas pré-incaicas ("Moxo-collas" e Chanés), de Incas e espanhóis, cada uma tendo deixado seus registros materiais naquilo que, segundo os guias locais, seria a "maior pedra talhada do mundo". Ao mesmo tempo, minha pesquisa revelou disputas entre duas escolas historiográficas principais: de um lado, uma que tendia a focar sua atenção, sobretudo, na presença dos Incas no lugar; de outro, uma que pretendia resgatar os elementos anteriores à ocupação incaica. O que primeiro parecia uma discussão puramente acadêmica logo foi se revelando uma questão diretamente associada a conflitos políticos atuais da vida boliviana: de um lado, a historiografia "incaica" era associada aos interesses dos "altiplanos" e das regiões onde o apoio ao MAS, partido do então presidente, Evo Morales, se revelava mais forte; de outro, a historiografia das "terras baixas", região de forte oposição a Morales, buscava construir uma narrativa temporal que dissociasse os povos daquela região da influência "andina". Em outros termos: enquanto estes últimos argumentavam que Morales teria a intenção de fazer "ressurgir" o império Inca - para tanto, se utilizando da história e da arqueologia como uma de suas ferramentas ideológicas -, aqueles contra-argumentavam que a presença incaica não poderia ser ignorada. Diversas questões entravam em jogo: o que seria "mais relevante", estudar a presença de povos que estiveram presentes "por milênio" no Fuerte, ou de um "império" que esteve "apenas" por alguns séculos na região? E as culturas pré-incaicas, de onde teriam se originado? Não teriam elas vindo, também, dos altiplanos, como atestava a presença de simbolismos muito semelhantes àqueles encontrados entre culturas andinas? Ou teriam elas se originado da floresta amazônica (portanto, de terras baixas)? Em ambos os lados, estava presente o esforço por construir um discurso anti-hegemônico: a historiografia "andina", que visava se desvencilhar da narrativa eurocêntrica, e a historiografia das terras baixas, que queria se emancipar do novo "império nacional" que julgavam estar emergindo.
Processo de patrimonialização: experiências com o dossiê do Banho de São João de Corumbá e Ladário.
Autoria: Luciana Scanoni Gomes, Álvaro Banducci
Autoria: O Banho de São João de Corumbá e Ladário - cidades banhadas pelo rio Paraguai e localizadas na fronteira com a Bolívia - foi reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil, inscrito no Livro de Registro das Celebrações em maio de 2021, constituindo o primeiro patrimônio imaterial exclusivo de Mato Grosso Sul a obter certificação do Iphan. Das providências iniciais da comunidade de festeiros e do poder público local, passando pelas negociações políticas, a formação de grupos de investigadores, a pesquisa bibliográfica e etnográfica até, finalmente, o registro, foram 11 anos de trabalho. É essa trajetória que o presente trabalho pretende expor, bem como os efeitos da patrimonialização de um bem tão presente no cotidiano da vida local como São João, considerado por muitos devotos o Santo da família. Assim sendo, o objetivo deste trabalho é revelar esse percurso e refletir sobre o processo de pesquisa do Dossiê do Banho de São João de Corumbá e Ladário, a partir dos procedimentos teórico metodológicos adotados para o desenvolvimento da investigação; dos desafios enfrentados por ocasião dos levantamentos de dados; bem como, das estratégias adotadas a fim de alcançar seus propósitos, tendo como parâmetro as demandas e expectativas trazidas pela comunidade e pelas agências parceiras.
Nas fronteiras do patrimônio: conflito e negociações em torno do Uaicarajé em Juiz de Fora, Minas Gerais
Autoria: Euler David de Siqueira
Autoria: A partir da ideia de que a realidade é uma construção social cujos sentidos e significados são negociados no curso de sucessivas interações, nos propomos a analisar a polêmica envolvendo o petisco Uaicarajé. Nosso recorte metodológico, qualitativo, se vale da pesquisa bibliográfica, exploratória e compreensiva (GEERTZ, 1978, 1992; MINAYO, 1994). Teoricamente lançamos mão dos conceitos de patrimônio, drama, midiatização e imaginário (SAHLINS, 1979; AMIROU, 2000; GONÇALVES, 2005; SANTOS, 2009). O Uaicarajé é um petisco produzido pelo restaurante Reza Forte, de Juiz de Fora, MG, para a competição anual "Comida di Buteco" 2022. Anunciado no Instagram no dia 07 de abril de 2022, o Uaicarajé rapidamente despertou a atenção de usuários da rede social pela referência ao ofício das baianas do Acarajé, patrimônio imaterial registrado no livro de saberes do IPHAN, em 2005. Importante referência cultural e identitária das mulheres que o produzem e o vendem nas ruas da Bahia e de todo o Brasil, a polêmica envolvendo o Uaicarajé acionou um campo cujas tensões e disputas que colocam no centro a própria categoria patrimônio.