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ISBN: 978-65-87289-23-6
GT69: Regimes de alteridade e construção de antropologias nacionais: Um exercício de antropologia histórica

João Pacheco de Oliveira, Stephen G. Baines

Este GT propõe como tema o encontro entre duas áreas de investigação que tem operado de forma independente. O estudo das identidades tem sido em geral associado à modos de dominação, processos econômicos e políticos, formas religiosas e mágicas com seus reflexos em ontologias próprias. Por sua vez a construção de antropologias é narrada usualmente como um capítulo da história das ciências, algo universal que se desloca no tempo e no espaço somente com alterações exteriores. Enquanto o primeiro parece assentado na escala nacional, a segunda é claramente transnacional. Se focalizarmos tais assuntos em sua íntima interrelação, iremos descobrir novos sentidos e potentes dinamismos. Os regimes de alteridade são produtos de um saber erudito, embasados em teorias científicas e representações artísticas, as quais legitimam igualmente as políticas públicas setoriais. A antropologia, pelos temas que trata, tem raízes e aplicabilidade social maior que outras disciplinas, sendo analiticamente instigante concebê-la não apenas como produto final (tese/livro), mas como resultado de múltiplas constrições que regulam a possibilidade das pesquisas, determinam a estrutura da situação etnográfica e controlam a circulação e uso dos seus produtos. Ao invés da normatividade de paradigmas científicos, ela se desvendará como artefato social e histórico permeado por regimes de alteridade. Explorar em termos etnográficos a interrelação entre estas duas áreas de pesquisa é o objetivo deste GT.

Palavras chave: Regimes de a0lteridade; antropologias nacionais; tradições etnográficas
Resumos submetidos
RELENDO OS ÍNDIOS: a produção Antropológica sobre os índios Tembé.
Autoria: José Rondinelle Lima Coelho
Autoria: Este ensaio foi uma ideia que surgiu a época do Doutorado em Antropologia Social que cursei na Universidade Federal do Amazonas. Nas inquietações que seguem abaixo analiso a relevância de algumas obras antropológicas para a visão que se tem hoje de populações indígenas como os Tembé do alto rio Guamá. Faço isto, apontando questões como a lacuna em um determinado período do século XX no que tange a escrita sobre índios Tembé, considerando que esta situação pode ter relação com a própria visão essencialista que obras como as de Charles e Wagley e Eduardo Galvão reforçam. Assim, este artigo desponta como uma contribuição e sugestão para pesquisadores que buscam estudar a sociedade indígena que se organizou as margens do alto rio Guamá, os índios Tembé.
Antropologia, ciência estrangeira: reflexões éticas sobre os clássicos da antropologia a partir da experiência sul-africana
Autoria: rodrigo ferreira barros
Autoria: Estudar os clássicos da teoria antropológica é para os estudantes de ciências sociais, não apenas uma tarefa necessária de embasamento teórico essencial para o debate, pesquisa e extensão científica, mas de reflexão sobre a construção de princípios éticos e metodológicos que hoje consideramos fundamentais para qualquer investigação antropológica que pretenda produzir conhecimento útil à comunidade acadêmica, e à sociedade em geral. Neste sentido, muitos programas de graduação e pós-graduação em antropologia social trabalham com um referencial teórico comum quando nos referimos aos clássicos da teoria antropológica, geralmente divididos em Teoria Antropológica 1 e 2, buscando apresentar a história de formação da disciplina, analisando escolas ou ‘paradigmas’ teóricos (STOCKING, 2006) que se ramificam e se transformam. Independente do tema de pesquisa do antropólogo, as primeiras discussões e hipóteses acerca dos comportamentos sociais da espécie humana são requisitos importantes, e para alguém que faz pesquisa em um país estrangeiro, neste caso um brasileiro pesquisando na África do Sul, permitem uma reflexão sobre o papel desses autores clássicos no desenvolvimento da disciplina em diferentes contextos, ampliando perspectivas políticas e acadêmicas. Motivado por questionamentos de alunos de graduação e mestrado em antropologia acerca da relevância de autores canonizados nos contextos atuais, este artigo busca apresentar alguns aprendizados importantes dentro da disciplina a partir da atuação profissional e acadêmica de autores clássicos como Malinowksi e Radcliffe-Brown no continente africano, especialmente na África do Sul, concluindo com comentários gerais sobre a importância de conhecer autores clássicos para a formação de profissionais éticos.
Regimes de alteridade na construção de histórias nacionais: a mulher indígena como um duplo Outro
Autoria: Suelen Siqueira Julio
Autoria: A comunicação apresenta algumas reflexões desenvolvidas na tese de doutorado defendida recentemente pela autora no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). Intitulada "Gentias da terra: gênero e etnia no Rio de Janeiro colonial", a pesquisa se beneficiou do diálogo com a Antropologia, disciplina que tem impulsionado a historiografia a se voltar para aspectos como os comportamentos, crenças e pontos de vista de sujeitos antes pouco considerados, a exemplo das mulheres indígenas. Conforme observado por alguns trabalhos, para além de constituírem categorias utilizadas para descrever os nativos americanos, os rótulos utilizados pelos europeus desde os primeiros contatos fizeram parte de um processo de hierarquização e construção do "outro". Assim, a atribuição de denominações como índia, índio e gentio da terra às pessoas da América expressou uma divisão que as colocava como um "outro" radicalmente diferente dos europeus. Tal ideia de alteridade radical não esteve destituída de intenções, servindo de justificativa para a dominação desse outro, visto como inferior e necessitado da fé, ordem e civilização a serem outorgadas pelos colonizadores. Nesse processo de formação de alteridades, nativos e outros grupos foram diferenciados, hierarquizados e classificados de acordo com múltiplos aspectos, como a procedência, a origem religiosa e os traços fenotípicos. Acrescente-se a essa lista o gênero, que, no caso das índias, colocou-as como um duplo Outro, enquanto mulheres e indígenas, constantemente olhadas, registradas e dirigidas por homens brancos. Longe de problematizar essa alteridade, a construção de uma história nacional brasileira - desde a obra oitocentista de Varnhagen até certas abordagens da atualidade, passando por autores consagrados do século XX - envolveu a consolidação dessa imagem da índia como um Outro, ainda que fosse um Outro que deu origem ao Nós. Trata-se da imagem da mulher indígena como "mãe do Brasil", ventre gerador do povo brasileiro, ideia presente não só em livros de história, mas no imaginário social. Problematizar essas imagens redutoras da experiência histórica das mulheres indígenas e apontar o seu protagonismo como sujeitos são os objetivos desta comunicação.
Alteridade e Modernidade: por uma arqueologia dos zoológicos humanos e arquivos da exotização
Autoria: Marina Cavalcante Vieira, Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque
Autoria: Os zoológicos humanos se desenvolveram, ao longo do século XIX, como entretenimentos de massa voltados para o público branco europeu, diante do qual se faziam exibir grupos de pessoas de culturas supostamente "primitivas" e exóticas — com reconstrução de cenografia e habitat, muitas vezes elaborados em meio à fauna e flora de zoológicos. Exibições do poder colonial, essas formas de entretenimento tinham características liminares: eram mostras ao mesmo tempo científicas e de sensacionalismo popular. De caráter pedagógico em sentido lato, ofereciam ao seu público a oportunidade de conhecer o mundo sem sair de casa, ao mesmo tempo em que construíam e "ensinavam" hierarquias raciais. Os zoológicos humanos foram extensivamente utilizados por antropólogos físicos, etnólogos e linguistas, servindo como campos transpostos para a Europa. A pesquisa investiga as extensas relações entre as exibições de pessoas ao longo do século XIX e a formação das ciências sociais (sociologia e antropologia) diante das modalidades discursivas da modernidade e seus outros. O tema dos zoológicos humanos aponta para uma revisão crítica da história da antropologia, da teoria social e da modernidade, a partir de uma teoria que reflete sobre alteridade e diferença. Os zoológicos humanos recontam não apenas uma história sombria ou que se queria esquecer da antropologia, mas também guardam uma arqueologia da modernidade e, portanto, esclarecem as interligações e fronteiras estabelecidas entre antropologia e sociologia no século XIX, a divisão colonial entre os campos de saberes: a sociologia como a ciência que estuda sociedades modernas e a antropologia como a ciência que estuda sociedades ditas primitivas, ágrafas e sem história. Convém agora borrar esses limites disciplinares. A modernidade funda a si mesma ao instituir-se em relação de diferença com seus "outros", ditos "primitivos". Seguindo a trilha de Foucault, que afirma que, para estudar os discursos sobre a normatividade, devemos olhar para a loucura e o desvio, para fazer uma arqueologia da modernidade, proponho-me a olhar para o exótico, a investigar os discursos modernos de exotização em zoológicos humanos, deixando claro que noções como moderno/primitivo e selvagem/civilizado nunca existiram em separado (Derrida, 1991). As imagens dos outros circulam nas grandes cidades europeias do século XIX, em museus, feiras, cinemas, exposições universais, literatura, teatro e descrições etnográficas. As imagens passam a fazer parte de uma modalidade de imaginação (Didi-Huberman, 2013) sobre o outro. O trabalho apresenta uma discussão sobre modernidade e alteridade, e faz tensionar as relações entre arte, ciência e entretenimento.
A polissemia dos "grandes projetos de desenvolvimento": o que dizem indígenas Tentehar?
Autoria: Anderson Augusto Mota Serra, Elizabeth Maria Beserra Coelho
Autoria: Pretendo fazer uma reflexão a partir das experiências de vida e dos discursos produzidos por indígenas do povo Tentehar, nos últimos anos, sobre o que consideram "grandes projetos de desenvolvimento" situados em terras ocupadas por eles na Amazônia maranhense. Até a década de 1960, no Maranhão, a implantação de grandes projetos de desenvolvimento envolvia empreendimentos como rodovias e hidrelétricas (COELHO, 1986; 1987; 2014). Posteriormente, entre as décadas de 1970 e 1980, a mineradora Vale iniciou a instalação da Estrada de Ferro Carajás (EFC), ligada ao Programa Grande Carajás (PGC), através da construção de 892Km de trilhos ferroviários para realizar o transporte de minérios explorados na Serra dos Carajás, localizada no Sudeste do Estado do Pará, até o Porto do Itaqui, na cidade maranhense de São Luís. A implantação da EFC foi responsável por desencadear, nas últimas décadas , a atração de produtores rurais provenientes do Sul e Sudeste do Brasil, vinculados ao agronegócio, que se estabeleceram na região Sul do Estado (SERRA, 2021). Essas breves considerações são necessárias para situarmos o avanço dos grandes projetos de desenvolvimento, no Maranhão, no contexto mais amplo de expansão espacial do capitalismo na Amazônia brasileira, nos moldes colocados por Silva & Sobreiro (2018), e suas consequências nocivas para sobrevivência dos povos indígenas e biodiversidade não-humana. Por volta de 2019 a 2020, vivenciei experiências junto a três Tentehar, situados nas TI Araribóia, Rio Pindaré e Canabrava/Guajajara. Ao me aproximar deles, minha primeira abordagem foi direcionada pela indagação acerca do que chamam "grandes projetos de desenvolvimento". O diálogo estabelecido com eles poderia ser definido, segundo Cardoso de Oliveira (2001), como um "diálogo intolerante", caracterizado por uma lacuna semântica. Um deles, ressalta os efeitos negativos do que considera grandes projetos de desenvolvimento e a outra interlocutora aponta para uma concepção positiva, que desenha grandes projetos como algo produzido por indígenas, para indígenas. Um dos interlocutores assume os dois posicionamentos fazendo uso de uma classificação que distingue grandes projetos elaborados por indígenas de grandes projetos feitos por brasileiros. Os discursos construídos sobre projetos e suas repercussões foram analisados na perspectiva do Olhar, Ouvir, Escrever (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996) - como três etapas estratégicas do métier do antropólogo. De posse dos dados construídos, analisei os discursos, considerando a necessidade de examinar a parte que cabe às palavras na construção das "coisas sociais" e tomar como objeto de discussão saberes produzidos pelos Tentehar a partir de suas próprias experiências de vida.
A Caminhada dos Mártires, a primavera Tupinambá
Autoria: Kowawa Kapukaja Apurinã
Autoria: A Caminhada Tupinambá - A Caminhada dos Mártires, acontece anualmente na última semana de setembro, tornando-se um momento e movimento político e ritualístico para os Tupinambá do Sul da Bahia. Os preparativos dos festejos são iniciados no mês anterior ao evento. As conversas entre as comunidades, acertos, reuniões e planejamentos são a plataforma de atividades que se desdobram até a data da caminhada, quando se tem os atos finais daquele ano, as variações culturais (BARTH, 2000). E entre muitas atividades coletivas e demandas que se acertam nas reuniões noturnas entre as lideranças e a comunidade está a Caminhada Tupinambá, que acontece todos os anos, quando recontam a história dos índios nadadores, a carta de Mem de Sá, a traição do outro grupo étnico, os corpos estendidos na praia, os que fugiram para a serra e a força de Marcelino que encantou, a ponte amaldiçoada e os esbulhos que sofreram e ainda estão em processo de resistência contemporânea. A narrativa é constantemente lembrada, reafirmação do lugar, de como ocorreram todos os processos do passado e a contemporaneidade, e a constituição da identidade na luta pelos territórios (PACHECO DE OLIVEIRA, J.1999). Uma vez que podemos entender que estes rituais ocorrem a afirmativa indenitária para um contexto de retomadas de territórios e lutas por políticas públicas, no qual o Estado envolvente torna-se eterno devedor. Isto é, pertencemos ao Estado, mas é uma inclusão precária e um espaço de lutas por dignidade e cidadania. "Os povos indígenas são nossos contemporâneos, não vivem em outra temporalidade radicalmente diferente "(PERES, s/d). Os povos e as terras que ocupam ou reivindicam fazem parte do Estado. A Caminhada Tupinambá dentro do processo de ritual do Poracin determina os passos adiante das articulações políticas e sociais das comunidades Tupinambá , não somente pelo fortalecimento da Terra, mas por uma identidade capaz de transpor os fenótipos coloniais/colonizadores do lugar do selvagem, o índio genérico , da tutela; imposto aos corpos, que é reificado de outros modos, no entanto, o esqueleto colonial permanece, o que muda são os corpos que alimentam as estruturas e as novas palavras que falam sobre.
Etnografia e Histórias de vida: As Relações entre indígenas e missionários católicos em Roraima
Autoria: Emanuel de Araújo Rabelo
Autoria: Neste trabalho analisaremos as narrativas das relações interétnicas e de contato entre os indígenas da etnia Macuxi e os missionários católicos. Partiremos da construção de uma etnografia das atividades das missões religiosas católicas de caráter sociopolítico. Explicaremos os processos de alteridade, agenciamentos e conflitos existentes na formação da organização sociopolítica e da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Nesse entendimento, diante a esse contexto de pesquisa faremos uso da etnografia com base nas discussões que fundamentam esse modo de pesquisar. Segundo Da Matta (1978), durante anos a Antropologia Social esteve preocupada em estabelecer com precisão cada vez maiores suas rotinas de pesquisa, ou, como é também chamado o exercício do ofício na sua prática mais imediata, do trabalho de campo. Portanto, a prática etnográfica não tem uma norma técnica específica, vai depender em qual contexto antropológico o pesquisador estará, e quais tipos de ferramentas ele pode recorrer na atividade de campo, que, na maior parte, podem ser revistas, reinterpretadas e compreendidas de acordo com o grupo ou sujeito em que o antropólogo está pesquisando. Além disso, o processo deste terceiro capítulo é a identificação e análise das narrativas que foram colocadas pelos interlocutores. De um aporte documental sobre uma ata de assembleia dos povos indígenas recente, que está em constante diálogo com missionários católicos, mas com alta autonomia sociopolítica e étnica em especial a partir da pré-homologação nos anos de 1980 e no pós-homologação depois de 2005 na TI Raposa Serra do Sol.
Uma Reflexão sobre a construção de antropologias nacionais no Brasil, Canadá, Austrália e Argentina.
Autoria: Stephen G. Baines
Autoria: Examinamos os regimes de alteridade e construção de antropologias nacionais em dois países de colonização britânica (Austrália) e britânica e francesa (Canadá), e dois países da América Latina de colonização portuguesa (Brasil) e espanhola (Argentina), todos com histórias muito diferentes e processos diversos de construção da nação. Ao examinar as histórias da antropologia nestes quatro países, evidenciam-se as particularidades da Antropologia com as populações indígenas, sobre as quais os Estados nacionais se expandem, o que lança luz sobre as identidades nacionais, em uma disciplina que se pretende ser universal, ao mesmo tempo em que seus contextos nacionais moldam suas trajetórias. Roberto Cardoso de Oliveira ressalta a importância de lembrar que "teorias e paradigmas são pensados e ativados por comunidades de profissionais de carne e osso" (2006, p. 108), e, ainda, alerta sobre o perigo de "nacionalizar nossas antropologias" (2006, p. 114). As representações que os antropólogos fazem acerca de si mesmos surgem em diversas formas, revelando uma perspectiva de membros de Estados nacionais imperialistas no caso dos países de centro (STOCKING JR., 1982). Essa maneira de se apresentar surgiu, também, para os antropólogos em nações de colonização europeia que pensavam seus países como extensões dos países de centro, o que pode ser postulado para o caso da Austrália na primeira metade do século XX (BAINES, 1995). Os antropólogos podem se identificar como membros de Estados nacionais ex-colônias de países europeus que veem seus países como colonizados e têm uma postura crítica à hegemonia, o que molda o estilo de pensar da intelligentsia nacional (RAMOS, 1990). Podem, também, se identificar como membros de nações minoritárias que reivindicam a independência do Estado (muitos quebequenses francófonos ao criticar a hegemonia anglófona no Canadá), e como membros de nações autóctones minoritárias dentro dos Estados nacionais, alguns dos quais reivindicam autonomia limitada, enquanto outros aspiram a uma autonomia radical (alguns antropólogos indígenas na Austrália e no Canadá).
O Médio Rio Negro, Eduardo Galvão e os estudos de mudança: antropologias, histórias e povos indígenas.
Autoria: Sidnei Peres
Autoria: Entre as malocas do Alto Rio Negro e a cidade de Manaus o antropólogo Eduardo Galvão vislumbrou, nos anos 1950, a formação de uma sociedade mestiça e cabocla, com o concomitante surgimento de um ethos regional. O principal fator de acomodação dos grupos indígenas a sociedade cabocla em formação seria a economia extrativista que isolava as famílias indígenas em pequenos assentamentos rurais em uma existência simbiótica com a população não indígena, em vez de "resultar em retração da população tribal remanescente para as malocas, num sistema tipo ‘reserva indígena". Três décadas depois irrompe um processo de etnogênese e ativismo indígena em moldes associativistas no Rio Negro que se ampliou na década seguinte. Apesar das limitações do modelo aculturativo de Galvão, ele percebeu a relevância do "cativeiro da dívida" para entender os processos de mudança que observava e registrava. Ele consolidou, codificando em uma versão erudita (o efeito Galvão), uma topologia imaginária da indianidade rio negrinha, que foi incorporada na atuação local das agências de intervenção. Pretendo situar historicamente o trabalho de campo de Galvão, no Rio Negro, (ícone maior da junção entre antropologia e indigenismo, ao lado de Darcy Ribeiro), a partir de minha experiência de pesquisa e atuação na região, para refletir sobre as conexões entre ciência e política (incluindo as perspectivas e os obstáculos epistemológicos) no desenvolvimento de uma antropologia histórica no Brasil.
E seremos nós que falaremos sobre nós? Antropologias indígenas: de "objetos de estudo" à antropólogos profissionais - miragens encantadas nas encruzilhadas de um debate político-epistêmico ainda pendente.
Autoria: Awamirim Tupinambá, Kowawa Kapukaja Apurinã
Autoria: Esse trabalho procura desvelar as encruzilhadas de tensões e disputas no campo político-epistêmico a partir de miragens encantadas, reflexões, contradições e desafios que se apresentam para a reprodução do campo disciplinar e profissional da antropologia feita no Brasil, sobretudo com a visibilidade da chegada dos indígenas antropólog@s nesse campo, e principalmente a partir da problematização histórica e de incursões genealógicas sobre os processos e condições concretas que construíram, marcaram e rasuraram colonialmente as sociedades indígenas e seus saberes e práticas (racismo epistêmico) muito antes de sua idealização/normalização como "objeto de estudo" na constituição do campo disciplinar da antropologia feita no Brasil. "Negros da terra" como indígenas escravizados, "Índios-línguas" como tradutores, mateiros, guias, remadores, mão-de-obra servil pelo sistema de aviamento do barracão, "informantes" dos primeiros etnógrafos e viajantes no século XIX e na segunda metade do século XX, inúmeros foram as formas de extrativismo e escravismo epistêmicos (os indígenas Tomacaúna Tupinambá, Kuêk Botocudo, Irimã Apurinã, dentre outrxs, são alguns casos exemplares retirados da história para análise nesse trabalho. Nossa chave de leitura parte da escravidão indígena para chegar ao regime do "escravismo epistêmico" ancorado nos imaginários discursivos que vai do índio como selvagem, bárbaro, gentio, chegando as formas atualizadas do índio exótico, ecológico, puro e purificado que além de negar a agência política e histórica das sociedades indígenas, seguem reforçando o estereótipo da metafísica do selvagem e da existência de sociedades incomensuráveis, portanto passíveis da tutela política-epistêmica. Buscamos assim tencionar o lugar colonial dos povos indígenas como "objetos de estudo", apontando possíveis caminhos político-epistêmicos para múltiplas formas de fazer antropologia ("etnografias encantadas"/"pajelanças críticas") a partir de outros referenciais epistêmicos, teóricos, éticos, linguísticos, filosóficos e intelectuais indígenas, ancorados em contextos sociopolíticos e experiências históricas específicos, e de documentos-manifestos dos encontros entre antropólogxs e indígenas ocorridos em Barbados, no Caribe na década de 1970 na "Primeira Declaração de Barbados: pela libertação do indígena", em 1971, e a "Segunda Declaração de Barbados", em 1977, elaborada exclusivamente pelos indígenas presentes naquele encontroe, e insistir na necessidade de ruptura com o racismo epistêmico e com a tutela político-epistêmica, buscando afinal uma crítica indígena (Apurinã e Tupinambá) dos colonialismos encobertos ainda persistentes nas antropologias hegemônicas feitas no Brasil e que segue informando a institucionalidade científica.