Nota sobre práticas de destituição de poder familiar de mulheres em situação de vulnerabilidade social e sobre caso de violência obstétrica e retirada compulsória de recém-nascida em Florianópolis/SC

A Associação Brasileira de Antropologia, por meio da Comissão de Direitos Humanos e dos Comitês de Antropólogas/os Negras/os e de Gênero e Sexualidade, vem a público externar sua preocupação com recorrentes casos de destituição de poder familiar aplicados a mulheres em vulnerabilidade social, que têm sido crescentemente notificados em diversos estados do país e manifestar solidariedade e apoio a Andrielli Amanda dos Santos, que recentemente teve violado seu direito à permanência e convivência com sua filha recém-nascida.

Andrielli Santos, mulher negra, de 21 anos, teve sua filha recém-nascida retirada três horas após o parto ocorrido no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC), no dia 28 de julho. Segundo reportagem publicada no Portal Catarinas, o HU/UFSC junto com outras maternidades da cidade, foi oficiado pelo Conselho Tutelar de Florianópolis no dia 5 de julho solicitando que a internação da jovem fosse informada imediatamente, o que se deu assim que Andrielli chegou no hospital, na manhã do dia 28 de julho. Logo após o parto, ocorrido às 10h31 da manhã, a recém-nascida esteve com a mãe por poucas horas, intervalo durante o qual pode tê-la no colo e amamentá-la. Três horas mais tarde, mãe e filha foram separadas e o bebê levado para outra ala do hospital, sem que mãe e recém-nascida tivessem o direito à manutenção do vínculo desde então. O pai da recém-nascidatambém foi proibido de ter contato com a criança e não pôde realizar o registro de nascimento da mesma. Os avós paternos da bebê registraram boletim de ocorrência denunciando o impedimento de acesso ao bebê.

Desde sua alta hospitalar, em 31 de julho, Andrielli junto com o pai e avós paternos da bebê buscou formas de manter contato com a criança, que foi encaminhada para acolhimento institucional. Procurou, ainda, ter autorização para amamentá-la no abrigo onde se encontra, o que também foi negado. A mãe conta com o apoio jurídico de uma advogada particular e da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPESC) que considera o caso como “injustificável” e fruto de uma série de ilegalidades e violências, especialmente o impedimento da mãe de visitar e amamentar a filha, configurado como violência obstétrica pela Lei Estadual Nº 17.097, de 17 de janeiro e 2017.

Para além da separação arbitrária entre mãe e recém-nascida, no dia 13 de agosto veio a público que Andrielli foi submetida a um procedimento de laqueadura durante a cesariana sem o seu consentimento expresso. Tal fato se caracteriza como esterilização compulsória e, somado ao impedimento da amamentação, reforça a situação de violência obstétrica, da qual Andrielli foi vítima. A jovem, que já havia passado por outras 3 cesarianas tem denunciado as violações nas redes e declarou sua tristeza pela dor de já ter perdido uma filha e indignação diante das alegações utilizadas pelo judiciário para justificar a retirada da bebê: ter sido usuária de drogas e ter estado em situação de rua durante um período da sua vida.

Andrielli, que já tivera destituído o poder familiar de duas crianças, uma delas nascida quando ela tinha apenas 13 anos (o que configura gravidez decorrente de estupro de vulnerável com direito legal ao aborto) e a outra quando a jovem tinha 18 anos, além da bebê que faleceu logo após o parto quando ela tinha 16 anos, luta pelo direito à amamentação e registro, pelo direito à maternidade. Sua história toca em violações fundamentais dos direitos reprodutivos e seu passado tem sido acionado como determinante de ações futuras, quando Andrielli luta para reescrevê-lo. Na mobilização por sua causa, ela conta com apoio de militantes do movimento negro, do movimento de população de rua e do movimento feminista que atuam em Florianópolis e que realizaram um ato pelo direito de mãe e filha no último 9 de agosto.

Atualmente, como noticiado pela mídia, o caso encontra-se sob investigação da 6a Delegacia de Polícia da Capital para apuração contra o Conselho Tutelar e o Hospital da denúncia de violência obstétrica. Além disso, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da DPESC está atuando junto com o grupo de trabalho “Mulheres” da Defensoria Pública da União para apurar os atos de violência obstétrica e possíveis responsabilizações e reparação. A DPESC também protocolou recurso após aprovação pelo judiciário da liminar no processo pelo Ministério Público pela destituição do poder familiar com acolhimento do bebê e impedimento de visita. O recurso foi negado por decisão do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Pelo direito à maternidade, pela garantia do direito de mãe e filha à amamentação e registro oficial, enquanto direitos fundamentais à vida e ao nome, a Associação Brasileira de Antropologia se solidariza com a família e se soma ao movimento de mobilização para exigir que mãe e criança tenham seus direitos garantidos e que Andrielli possa registrar e amamentar sua filha. Também, chamamos a atenção para as graves violações de direitos que sofrem mulheres vulnerabilizadas nas suas condições de sobrevivência econômica, social e de saúde, sobretudo mulheres negras que são ou foram usuárias de drogas e/ou estiveram em situação de rua, quando se trata de exercer o direito à maternidade e os cuidados associados a ela para com seus bebês. Essas violações, como as evidenciadas no caso da Andrielli e as registradas por uma série de trabalhos etnográficos, não são situações isoladas, tendo ocorrido com frequência e se configurando como formas de governo sobre os corpos e vidas dessas mulheres e suas famílias. Diante disso, reiteramos a importância de que as instâncias do Sistema de Justiça contextualizem este e outros casos em relação aos atravessamentos sociais, econômicos e educacionais e de relações estruturais de gênero e de raça e baseiem suas sentenças e decisões em critérios objetivos que visem a promoção e garantia de direitos como o exercício da maternidade e o desenvolvimento pleno das crianças.

Brasília, 19 de agosto de 2021.

Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sua Comissão de Direitos Humanos, seu Comitê de Antropólogas/os Negras/os e seu Comitê Gênero e Sexualidade

Leia aqui a nota em PDF.

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