Manifestação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sobre o Processo n. 1035763-30.2021.4.01.3400, Ação Anulatória da Certificação Administrativa de Remanescentes de Comunidade Quilombolas emitida pela Fundação Cultural Palmares à Comunidade Conceição de Salinas (BA)

A ABA, por meio do seu Comitê Quilombos, vem manifestar-se a favor do reconhecimento dos direitos territoriais da Comunidade Quilombola Conceição de Salinas, município de Salinas Margarida (BA) garantidos constitucionalmente e definidos pelo processo de Certificação Administrativa pela Fundação Cultural Palmares (FCP), como “Comunidade Remanescente de Quilombo”. A Certificação Administrativa está consolidada através de um procedimento definido pela legislação brasileira que valida os laudos e relatórios produzidos por antropólogos comprobatórios dos direitos territoriais dos quilombolas.

As ameaças geradas pela Ação Anulatória (n. 1035763-30.2021.4.01.3400), peticionada por Bahiana Empreendimentos Imobiliários Ltda, questiona a legalidade do processo de Certificação da Comunidade Quilombola de Conceição de Salinas, colocando em questão tanto os direitos constitucionais dos quilombolas, quanto a legitimidade do trabalho dos antropólogos vinculados à ABA. É inadmissível que documentos produzidos fora de parâmetros científicos, desvirtuando conceitos elaborados, discutidos e reformulados pela comunidade acadêmica, reiterem uma concepção sem reconhecimento acadêmico de quilombos. Ressaltamos a inconsistência teórica dos argumentos apresentados, que ignoram as formas organizativas que alicerçam a auto definição dos agentes sociais como quilombolas.

Além de enfatizar que “a condição de remanescente quilombola como inexistente a Ação Anulatória afirma, com argumento circular e inócuo, que o Processo Administrativo de Certificação da “Comunidade Remanescente de Quilombo” de Conceição de Salinas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) teria incorrido em diversos vícios formais. Como parte da Ação consta um relatório intitulado “Relatório Etnohistórico” e um texto intitulado “Salinas Da Margarida: Vozes Ancestrais, Tradicionalidade e Saberes”, ambos direcionados a questionar o direito à auto identificação e os direitos territoriais quilombolas em pauta. Nestes textos os quilombolas são caracterizados como invasores, e o processo de certificação como responsável por insuflar “os membros da comunidade ribeirinha de Salinas de Margarida, ante a possibilidade de aquisição de novas terras, promovendo (,…) tentativas de esbulho e turbação de posse contra a propriedade deste peticionante” (item 4 dos autos).  Na sequência, a ação induz que “quilombolas nunca exerceram a posse daquelas áreas de terras e que tal evento de certificação fundamenta a “legitimidade da invasão do imóvel em razão de terem sido certificados como comunidade quilombola (item 5)”.

Diante destas graves acusações, manifestamo-nos para asseverar que os argumentos apresentados no âmbito da Ação de Anulação estão totalmente em desacordo com os preceitos jurídicos resguardados na Constituição Federal de 1988 e dispositivos internacionais como a Convenção 169 da OIT, no qual o Brasil é signatário, conforme arrazoamos a seguir:

  1. Com relação à lisura do processo de Certificação pela FCP. O processo Administrativo n. 01420.001629/2015-83 reconheceu oficialmente como “Comunidade Remanescente de
    Quilombo” a Comunidade de Conceição de Salinas, através de certidão emitida dentro dos trâmites formais previstos, registrado na Portaria n. 62, de 31/01/2017, publicada no Diário Oficial da União em 03/02/2017. Asseveramos que essa comunidade foi certificada a partir de critérios científicos centrados no estudo de suas memórias, organizações sociais e demais referências culturais que conduziram à comprovação dos direitos à certificação do território como quilombola. A sua própria existência que, neste caso, corresponde a um período anterior a assinatura da Lei Áurea, em 1888, se constitui em um processo sociocultural de retomada da memória para comprovar e acessar o direito ao reconhecimento. Sendo assim, a emissão de Certificação não pode ser associada a “consequências nefastas”, “procedimento de autodefinição unilateral” nem decorre de um processo “com o objetivo de aferir uma realidade fática” (item 11), como o peticionário alega.  Ao contrário, o Processo Administrativo de Certidão de reconhecimento é parte de uma política de reconhecimento garantido pela legislação brasileira.
  2. Com relação ao questionamento da identidade quilombola e Associação. A noção de quilombo na contemporaneidade refere-se a um processo de organização política, social e jurídica que remonta ao passado de escravidão e à opressão histórica sofrida. Este processo de organização não é, e não exclui, as afirmações de outras identidades, de memória sociais múltiplas constituídas por sujeitos sociais heterogêneos: pescadores,  extrativistas, povos de terreiros, entre outros. Estas múltiplas identidades são contextuais e relacionais, não excludentes, são amalgamadas pelo sentimento de pertencimento a um território e a uma luta pelo reconhecimento de direitos. São planos da cidadania brasileira, dos brasileiros. A própria comunidade Conceição das Salinas aponta em documento que “já titula seus espaços de vida e sobrevivência como Quilombo há anos e que antes de pedir a Certificação já se Auto Declarava Comunidade Quilombola”, conforme conta nos autos (p. 401 dos autos). No caso de Conceição de Salinas, a organização social e política está relacionada com a trajetória que combina a história da escravidão com a atividade de pesca artesanal. São brasileiros, sujeitos sociais com múltiplas identidades que decidem em um determinado contexto de conflito, acionar o direito quilombola previsto na Constituição Brasileira. Portanto, a própria Associação de pescadores Artesanais, previamente existente, não é incompatível com a associação quilombola. Ao contrário, o processo de mobilização coaduna pescadores e quilombolas, em torno da luta pelos direitos ao território e defesa do meio ambiente, protagonizando inclusive ações ambientais recentes como o abraço simbólico na Ilha do Medo contra a implantação do criatório Bijupirá, conforme consta nos O próprio nome da Associação Comunidade pesqueira e quilombola de Conceição de Salinas, confirma esta compreensão, ratificada em seu estatuto artigo 4o: “VII- fortalecer a luta quilombola da comunidade; e no VIII- fortalecer a luta pela defesa e garantia dos territórios tradicionais pesqueiros; A impossibilidade de dissociar tais identidades reflete-se no número ilimitado de associados reconhecidamente integrante tradicional pesqueira de Concepção de Salinas, como consta no artigo 4º do estatuto. (p.243 dos autos) A decisão de acessar o direito quilombola não se reduz e não pode ser reduzido ao cumprimento de atos formais mas expressa, antes, o anseio de uma coletividade, pela existência enquanto um grupo social distinto no âmbito do espaço de um Estado pluriétnico e multicultural. Neste processo, somam-se associados e não associados, interessados em confirmar a autoafirmação quilombola. As comunidades quilombolas estruturam as associações comunitárias para cumprirem as exigências  legais  para fins de acessar o direito constitucional,  o  que  não significa que organizações sociais prévias não existissem, ou que não aglutinassem  sujeitos  que  compartilham  uma  trajetória  comum  e  um  sentimento de  pertencimento  a uma  determinada  coletividade,   como  a   Associação   de  Pescadores Artesanais de Conceição de Salinas (APACS), comunidade formada majoritariamente por negros e pescadores artesanais. Neste caso, a Associação Comunitária aglutinou sujeitos coletivos identificados como pertencentes a uma comunidade, não apenas cumpriu com a legalidade como se adequou às exigências legais para viabilizar o pleito pelo reconhecimento dos direitos quilombolas.
  3. Com relação à tese que os quilombolas nunca exerceram a posse daquelas áreas de terras. Trata-se de uma interpretação equivocada. A comunidade de Conceição de Salinas é detentora de um território que é o suporte material para suas expressões e memória sociocultural. O território tem uma dimensão histórica, sendo formado por uma variedade de processos e critérios que definem a forma de ocupação ou organização dos espaços produtivos. Identidade cultural e território tradicional são indissociáveis. São heranças recebidas de antepassados, que devem/precisam ser transmitidas às novas gerações. Ocorre que o território tradicional da comunidade de Conceição de Salinas vem sendo palco de conflitos em tentativas de esbulho, sobretudo pela intervenção de grandes projetos de desenvolvimento. A urgência e violência das situações de conflitos justificaram a solicitação da comunidade da necessária brevidade no encaminhamento do processo de reconhecimento de comunidade quilombola e de regularização fundiária, como consta o Ofício para a FCP, de 10/12/2015 (página 399 dos autos). Efetivamente, o processo de emissão de certificação é um mecanismo institucional de preservação e fortalecimento do patrimônio cultural afro-brasileiro existente no território nacional. Por isto, é equivocado afirmar como consta na Ação Anulatória que o evento de Certificação fundamenta a “legitimidade da invasão do imóvel em razão de terem sido certificados como comunidade quilombola (item 5)”. É também equivocada a afirmação de que a comunidade nunca “exerceu posse ou ocupou tradicionalmente qualquer porção territorial do referido imóvel… (item 6)”, uma vez que não houve a conclusão do processo de regularização fundiária do território de Conceição de
    A Constituição Federal de 1988 e a Convenção OIT 169 atualizaram o sentido de terras tradicionalmente ocupadas, ampliando o seu significado, coadunando-se com os aspectos situacionais que hoje se caracterizam pelo advento de identidades coletivas. A noção de TERRAS TRADICIONANLMENTE OCUPADAS, segundo esta legislação, está DISSOCIADA da noção de “IMEMORIALIDADE”, bem como de um tempo linear e de uma suposta origem como fundamento do direito à terra. Por isto, o artigo 68 do ADCT guarda vínculo racional com o artigo 231 da Constituição Brasileira. Encontra-se em diálogo com a historicidade do passado quilombola, assim como de acordo com a Convenção 169 da OIT, em seu artigo 14, asseverando o seguinte, em termos de dominialidade: “Dever-se-à reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
  4. Com relação às acusações pejorativas aos quilombolas acusando-os de “invasores”. O pensamento social está carregado de preconceitos e estereótipos relacionados às comunidades quilombolas. Não se pode aceitar conceitos e noções arcaicas sobre quilombos que os tem associados historicamente a condições de invasores, bandidos ou até mesmo selvagens. A luta do povo quilombola está em grande parte baseada no reconhecimento da liberdade de expressar a sua identidade e construí-la de maneira positiva, livrando-se de estereótipos. A marginalização que historicamente as comunidades quilombolas foram relegadas produz, por sua vez, uma distorção destas realidades que, equivocadamente, são aludidas de forma pejorativa e desqualificadora pelos termos “invasores”, “posseiros”, “miseráveis”, entre outros termos. Tratamentos que, infelizmente, potencializam os tensionamentos locais, a intolerância e o preconceito. Proposições que ferem princípios constitucionais nacionais e internacionais e de que nada ajudam a compreensão das razões da manutenção deste padrão histórico de opressão da população negra da qual resultou a marginalização e as violências vivenciadas por esta população no contexto atual. Os quilombos não são e nunca foram invasores, posseiros, ou traficantes. Trata-se de grupos sociais organizados que buscam a regularização de terras onde construíram e inscrevem formas específicas de viver e de fazer voltado à busca pela autonomia como condição fundamental para a liberdade.  Não se trata de formações resultantes de ocupações irregulares, mas de territorializações advindas de processos de organização social, que possibilitaram o acesso ao uso comum de terras e de recursos naturais e dos quais não obtiveram o reconhecimento legal até o presente momento, por parte do Estado brasileiro.
  5. Com relação ao material denominado Relatório Etnohistórico de 2021 e texto “Salinas Da Margarida: Vozes Ancestrais, Tradicionalidade e Saberes”, 2021, presentes nos autos. Avaliamos que ambos os materiais não cumprem parâmetros acadêmicos e científicos, apresentando compreensões distorcidas e desatualizadas sobre a noção de quilombos e da legislação pertinente. A categoria política-jurídica de “quilombo” ou se “remanescente de quilombo” são expressões usadas para conferir direitos socioambientais àqueles “sujeitos históricos presumíveis” que existem no presente. Esta definição compreende a autodesignação, articulada a uma politização dos conflitos que acompanha essa construção. Os dois materiais referidos acima constituem conteúdos de desrespeito a Comunidade de Salinas, uma vez que desconsideram o direito daquele grupos social em aquilombar-se, seu direito à auto-organização e a auto identificação.  Cabe ressaltar ainda que, o Relatório Etnohistórico não cumpre os requisitos estabelecidos através do Acordo de Cooperação técnica da ABA e com a Procuradoria Geral da República, onde se detalha a complexidade das qualificações fundamentais para tal exercício. Documentos elaborados pela ABA como Carta de Pontas das Canas, de 2001 e o Protocolo de Brasileira:  laudos  antropológicos,  em 2015,  servem  de  parâmetro  ao  protocolo  desta Cooperação Técnica e especificam  as condições para o exercício de um trabalho científico nestes contextos.  Neste caso, o autor do documento não é filiado a ABA e nem mesmo possui qualificação disciplinar exigido no cumprimento do protocolo de Cooperação Técnica. Destacamos ainda que tal relatório utiliza-se de método de investigação distanciado da pesquisa etnográfica em âmbito local, método valorizado e praticado pela comunidade cientifica brasileira. A pesquisa antropológica neste contexto deve buscar compreender a luta dos grupos que reivindicam direitos aos territórios ancestrais e à cidadania, a partir de leitura crítica e independente, centrada na convivência com o grupo estudado.  O saber antropológico investiga os usos, costumes e tradições das comunidades tradicionais, descreve sua organização espacial e as formas de cuidar de suas vidas coletivas. Todos estes aportes já foram reconhecidos pelo STF, no contexto de julgamento sobre a constitucionalidade do Decreto 4887/2003 pela ADIN 3239/2004. O Relatório Etnohistórico, ora em tela, visa desconstruir o direito a auto identificação e negar a legitimidade do pleito formulado pela comunidade de Conceição de Salinas.    O artigo 68 do ADCT/88 e o art. 231 da CF/88 estão vinculados à Convenção 169 da OIT, porque reconhecem de maneira explicita a usurpação dos territórios quilombolas desde o domínio colonial; admitem os fatos relativos à expulsão e deslocamentos compulsórios de comunidades negras pela intervenção de diferentes segmentos e da omissão do Estado brasileiro, o que permitiu o esbulho renitente dos territórios tradicionalmente ocupados. A noção de “terras ocupadas” não se restringe, todavia, à noção de “terras utilizadas” mas, sim, à dimensão da tradição dos modos de criar, fazer, e viver no presente. Não se trata de terras de domínio privado, mas de terras de ocupação tradicional, suporte da memória, da história, da identidade e do legado recebido dos antepassados, um patrimônio cultural que deverá ser resguardado, valorizado e protegido pela titulação. Avaliamos que o intitulado Relatório Etnohistórico é uma peça sem critérios científicos, elaborada para apoiar a Ação de Anulação na tentativa de frear as condições de existência e resistência da Comunidade Quilombola de Conceição de Salinas, acentuando o quadro histórico de opressão, marginalização, insegurança jurídica e vulnerabilidade no qual já está inserida pela morosidade do processo de regularização fundiária.

A ABA coloca-se contrária aos argumentos reproduzidos na Ação Anulatória do Processo Administrativo de Certificação da “Comunidade Remanescente de Quilombo” de Conceição de Salinas considerando-os sem qualquer fundamento científico e repudia veementemente os argumentos arrolados. Como outras comunidades tradicionais no Brasil, Conceição de Salinas reivindica o reconhecimento dos direitos que incluem não apenas a certificação pela FCP, mas a retomada  urgente do processo de regularização fundiária pelo INCRA e a fiscalização e aplicação de políticas públicas, como prevê a legislação brasileira.

Brasília, 15 de julho de 2021.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Quilombos

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